Em meio à disputa entre esquerda e direita sobre censura e liberdade na internet, Melissa Fleming, subsecretária-geral da ONU para comunicações globais, é categórica. “É possível regular mantendo a liberdade de expressão”, diz ela à Folha.
Fleming vem ao Brasil na semana que vem para participar do evento paralelo ao G20 “Integridade da informação: combate à desinformação, ao discurso de ódio e às ameaças à democracia“.
“Se deixarmos as plataformas cumprirem apenas suas próprias regras, não chegaremos a um ecossistema de informações saudável, porque elas não cumprirão”, afirma. As Nações Unidas se preparam para lançar seus princípios de integridade de informação, e a subsecretária espera que empresas sigam essas diretrizes, apesar de a organização não ter poder vinculante.
Leia a seguir a entrevista.
No ano passado, em um discurso na ONU, a sra. afirmou que o ambiente online tinha piorado muito, pois as maiores plataformas haviam reduzido ou eliminado equipes de moderação e segurança. Como avalia a situação hoje, num ano com recorde de pessoas votando em eleições em todo o mundo?
Infelizmente, não parece ter melhorado. Em especial no X, estamos vendo relatos alarmantes de discurso de ódio e desinformação. É uma situação muito preocupante. De certa forma, ao demitir praticamente todo mundo da equipe de segurança, [o X] estabeleceu um novo padrão para as outras plataformas e permitiu que todas reduzissem significativamente seu pessoal.
Nós sentimos isso na pele. Fizemos uma pesquisa global com funcionários da ONU, e 88% disseram que a desinformação estava afetando negativamente a capacidade de realizar seu trabalho. Temos cada vez mais evidências de que nossos ecossistemas de informação são tóxicos e que o surgimento das mídias sociais nesta última década contribuiu significativamente para isso. E isso também resultou no declínio do modelo financeiro dos veículos de mídia independentes e de interesse público. Até em países ricos como os EUA vemos os desertos de notícias [cidades onde não há mais nenhum veículo de comunicação].
Então, sem esse pilar [de informação confiável], temos cada vez mais pessoas obtendo notícias de canais de mídia social que, mesmo quando tinham equipes mais robustas, não faziam moderação de conteúdo adequada na maioria das partes do mundo. Como revelou Frances Haugen [ex-funcionária do Facebook que fez denúncias contra a empresa], cerca de 80% da moderação de conteúdo estava focada nos EUA e na Europa. Vimos como o discurso de ódio se espalhava em países em conflito como a Etiópia. Entrávamos em contato e pedíamos desesperadamente que [conteúdos com incitação à violência] fossem removidos, e nada acontecia. Quando finalmente removiam, o estrago já tinha sido feito, quem sabe quantas vidas haviam sido perdidas. As plataformas não estão fazendo o suficiente para impedir os riscos informacionais de circularem e causarem danos offline.
Como a sra. vê a possibilidade de a inteligência artificial seguir este mesmo caminho das mídias sociais?
Quando as redes sociais surgiram, os empresários do Vale do Silício eram considerados caras legais que estavam defendendo nossos interesses, conectando-nos e permitindo que reencontrássemos amigos da faculdade. Havia muita empolgação na época. Desde então, muitas coisas aconteceram, e há uma enorme preocupação com o ambiente de informação. É o contrário do que acontecia quando as redes sociais surgiram.
Nos EUA, parece haver um amplo apoio bipartidário, especialmente em relação aos efeitos prejudiciais às crianças. Governos e legisladores percebem a necessidade de agir rapidamente em relação à inteligência artificial generativa. Há um grande apelo por sistemas de governança regionais e internacionais. O secretário-geral [da ONU, António Guterres] criou um conselho consultivo de IA com especialistas de todo o mundo que apresentarão um relatório em junho sobre como criar uma governança global. Há um foco nas oportunidades incríveis que a IA oferece, como melhorar o atendimento médico e a educação em grande escala. No entanto, também há preocupações, como a disseminação de desinformação. É claro, nada disso se disseminaria, seria distribuído, se não existissem os canais de redes sociais. A combinação dos dois tem um enorme potencial para aumentar, ainda mais, os riscos. Então acho que existe uma maior conscientização, e muitas iniciativas para criar mecanismos de segurança, como as marcas d’água [para indicar conteúdo feito com IA].
A ONU está desenvolvendo princípios para preservar a integridade da informação. A sra. acha que algo voluntário, não vinculante, vá ser suficiente para as plataformas agirem?
Sabemos que, ao nos concentrarmos apenas nas plataformas, não estaremos abordando o ecossistema como um todo. Precisamos abordar os anunciantes, que também devem seguir padrões, assim como empresas de relações públicas e Estados-membros, porque, como sabemos, alguns são disseminadores de desinformação. Provavelmente, o que quer que digamos a eles não os mudará, mas devemos relembrá-los sobre certos princípios já presentes em acordos internacionais, incluindo a proteção da liberdade de expressão.
Na sociedade civil, há muita preocupação sobre preservar a liberdade de expressão. Muitos são favoráveis a pesquisas, checagens de fatos e preservação de uma mídia independente forte, de interesse público, bem financiada, que não seja assediada, presa, não sofra doxxing [exposição de dados pessoais em redes sociais]. E nosso documento abordará vários aspectos e será aplicável em todo o mundo. Esperamos que beneficie especialmente populações vulneráveis e marginalizadas.
A ONU não tem poderes vinculantes, mas tem autoridade moral global, então esperamos que governos, sociedade civil, plataformas sigam esses princípios. Talvez até funcionários das empresas de tecnologia possam dizer: “A propósito, os princípios da ONU dizem tal coisa, por que não estamos fazendo isso?”
O que se comprovou eficaz em regulação do ecossistema de informações e o que definitivamente não é recomendável, pensando na proteção da liberdade de expressão?
Na Lei de Serviços Digitais da União Europeia, eles se basearam firmemente na liberdade de expressão. A lei entrou em vigor em fevereiro, então ainda precisamos observar. Mas é possível regular a internet mantendo a liberdade de expressão. Se deixarmos as plataformas cumprirem apenas suas próprias regras, não chegaremos a um ecossistema de informações saudável, porque elas não cumprirão. Então, precisamos de mecanismos de segurança, permitindo a liberdade de expressão. Vamos deixar os fatos se sobreporem às mentiras.
Certos governos usam a regulamentação como arma para censurar o discurso. Por outro lado, plataformas dizem que qualquer regulação viola a liberdade de expressão. Como escapar dessa dicotomia?
Acho que nossa formulação, que também se baseia nos acordos de direitos humanos da ONU, será muito calibrada para mostrar que isso é possível. Desde o início, a maior preocupação foi não dar pretexto para aqueles governos que estão bloqueando a internet e prendendo pessoas por se expressarem online. Não podemos minar a liberdade de expressão por meio do combate aos riscos da informação. É um equilíbrio delicado.
Existe o chamado teste de três partes no direito internacional dos direitos humanos. Quaisquer restrições têm que ser claras e não arbitrárias, precisam ser legítimas e devem proteger os direitos ou reputações. Muitos acham que a Lei de Serviços Digitais conseguiu esse equilíbrio. Veremos como isso vai avançar. Também há outras legislações recentes, por exemplo, no Reino Unido, o Online Safety Act, e na Austrália, com uma lei de mesmo nome. As duas têm a liberdade de expressão no cerne.
A senhora tem preocupações sobre o ecossistema de informações no Brasil?
O Brasil percorreu um longo caminho, e o vemos como um líder no espaço da integridade da informação. Está promovendo esta reunião do G20, reunindo a comunidade internacional para enfrentar e analisar essa questão. Sei que o governo está tentando encontrar uma maneira de proteger as pessoas e o ambiente online. Vocês têm veículos de imprensa muito fortes, mas as redes sociais nos últimos anos se tornaram dominantes como fonte de notícias para as pessoas. E isso tem levado as pessoas a caminhos enganosos e perigosos.
Trabalhamos no Brasil durante a Covid-19, com duas iniciativas de comunicação. Não é apenas a regulamentação, é importante trazer à tona conteúdo científico confiável, de consenso científico. E é preciso apoiar a mídia de interesse público que também está tentando fazer o mesmo.
Raio-X | Melissa Fleming
Americana, é subsecretária-geral da ONU para Comunicações Globais desde setembro de 2019. De 2009 a 2019, foi chefe de comunicações globais do Acnur, agência da ONU para refugiados. É formada em estudos alemães pelo Oberlin College e tem mestrado em jornalismo pela Universidade Boston