“Veja isso aqui. Americano”, diz Roman Ivanov ao mostrar um circuito integrado com chips e outros componentes feitos nos Estados Unidos. “Aqui, material feito por nós”, conta, mostrando um emaranhado de fios incompreensíveis para um leigo no cérebro de um drone, que ele diz servir ao piloto automático.
“É impossível impor sanções contra nós, nós nos adaptamos”, disse o jovial diretor de desenvolvimento de drones da STC (Centro de Tecnologia Especial, na sigla em russo), a fabricante do modelo de avião-robô mais utilizado por Moscou na Guerra da Ucrânia, o Orlan-10.
Ele e o presidente da empresa, Roman Agafonnikov, guiaram a reportagem durante cinco horas por uma visita inédita para um jornalista ocidental às duas maiores de dez unidades da STC, em São Petersburgo, terra de Vladimir Putin, na última terça-feira (12).
O raro acesso permitiu à Folha comprovar aquilo que era sugerido na análise de destroços dos drones derrubados na Ucrânia: eles seguem sendo montados com peças fabricadas por fornecedores ocidentais, a maioria dos EUA.
“O planeta é muito grande”, sorri Ivanov, ao ser questionado sobre a origem dos chips, peça central de sistemas como o de guiagem e comunicação dos aparelhos.
Por óbvio, ele não estende sua explicação, mas análise publicada em 2022 pelo mais antigo think tank de defesa do mundo, o britânico Rusi (Instituto Real de Serviços Unificados, na sigla em inglês), aponta que empresas comandadas por russos em Hong Kong, Canadá e EUA podem fazer a ponte de fornecimento por meio de uma firma de comunicação em São Petersburgo.
A STC não fala sobre isso, mas é bastante franca acerca da realidade. “Faltam chips [ocidentais], mas há uma boa quantidade de chips da China. Eu acho que a tecnologia deles é tão boa que vou trocar meu BMW X7 de 2020 por um carro chinês”, brinca Ivanov.
Apontando para o vasto depósito da empresa, ele diz que a política de substituição não é apressada. “Nós compramos tudo o que podíamos comprar. Desde os anos 2000”, afirma, sugerindo que a preparação para o embate com o Ocidente sugerido em 2007 por Vladimir Putin em discurso teve contornos práticos.
“Temos estoque para produzir por um ano”, diz, lembrando que a visita é em uma unidade que pode ser alvo a qualquer momento de um ataque com drones da Ucrânia. Os cinco andares do galpão de 25 mil m2 sugerem que ele não está blefando sobre o fôlego acumulado.
Mais que isso, a visita passou por todas as etapas de construção do Orlan-10 e seu irmão maior e mais novo, o Orlan-30. À primeira vista, são aeronaves rudimentares, mas há muita tecnologia envolvida: o plástico injetado predomina pelo fator custo, mas asas e partes da fuselagem de 2 metros de comprimento e 3,1 metros de envergadura do modelo menor são feitas de sofisticados materiais compostos.
A STC é uma da raras empresas privadas, fora do controle da estatal de defesa e tecnologia Rostec, a prosperar na guerra. Segundo Agafonnikov e Ivanov, sua produção passou de “poucos” para “centenas” de drones por mês desde 2022.
Eles não dão números, mas analistas militares sugerem que 5.000 Orlan-10 foram feitos. Ao menos 194 foram derrubados ou capturados na Ucrânia, segundo o Oryx, site holandês de monitoramento de dados abertos.
“Aumentamos nossa produção de 10 a 30 vezes, dependendo do produto. Em termos de funcionários, temos 16 vezes mais hoje do que em 2020”, diz o projetista. Segundo observadores, estão entre 1.000 e 2.000 hoje. Ivanov apenas diz que, em 2020, eram feitos 400 Orlan-10 por ano, e que “antes, conhecia todo mundo na festa de Natal, mas não mais”.
Na linha de produção, o modelo em fase final de montagem mais recente levava o número de série 17.773, sugerindo uma totalidade de drones feitos —a STC fabrica uma série de outros aviões não tripulados também de uso civil, além de sistemas diversos incluindo microssatélites.
Acerca das peças dos drones, Ivanov concede que particularidades se impõem. “A guerra baixou algumas exigências”, diz. Em português, o emprego de peças russas ou chinesas mais baratas e menos sofisticadas se tornou aceitável.
Durante a visita, ele mostra orgulhoso componentes que antes eram importados e agora são manufaturadas em São Petersburgo, particularmente as partes de motor e as câmeras de observação do Orlan —nome russo para águia-pescadora, endêmica na região petersburguense. O mesmo valerá para o maquinário, hoje de marcas como a Makita japonesa.
“Depois da operação militar [eufemismo russo da guerra], vimos o caráter dos japoneses”, conta. O Orlan-10 foi desenhado para usar um motor nipônico da empresa Saito, que lhe permite voar a 150 km/h. “Nos últimos mil motores, não vimos nem eles nem o dinheiro que pagamos”, afirmou.
Hoje os motores são russos, assim como as câmeras, que eram israelenses. A qualidade pode ser inferior, mas as necessidades são maiores. Mas ainda há material de ambos os países nos depósitos da STC, o que gera um “mix” curioso saindo e voltando da fábrica.
Voltando porque os drones danificados na Ucrânia ainda passíveis de uso são remetidos para a STC. A reportagem viu a linha de reparos, com modelos usando motores japoneses fabricados em 2020.
Ivanov é um entusiasta técnico, tendo construído um drone rudimentar com 11 anos de idade, em 1984. Politicamente, é alinhado ao Kremlin, como seria de se esperar. Considera a Guerra da Ucrânia uma inevitabilidade, e acredita que o Brics (bloco da Rússia com Brasil, China, Índia e África do Sul) poderá alterar a geopolítica.
Isso impacta os negócios? O projetista diz que uma delegação brasileira esteve na fábrica, mas nada prosperou. “Vocês são dos americanos”, disse. Segundo a Folha ouviu depois no Itamaraty, o problema da negociação foi o fato de que os russos não queriam participar de licitação, e sim fazer uma venda direta.
Ivanov considera que drones de ataque de grande porte e os minúsculos FPV (sigla em inglês para visão em primeira pessoa) são modas passageiras. “O custo-benefício não é bom. Há muita gente querendo ganhar dinheiro”, diz.
Sobre o mais famoso drone kamikaze russo, o iraniano de nascimento Shahed-136, ele é econômico. Mas não esconde o jogo: “Ele foi muito desenvolvido, tanto no Irã como aqui”. Nada de negar que o Gerânio-2, nome da versão produzida na Rússia, tem DNA persa.
Ele diz ter horror a Elon Musk, que considera “maluco e perigoso” em seus experimentos com inteligência artificial. O russo afirma que a IA está presente nos seus produtos, mas nunca terá predomínio sobre o comando humano.
Ele tem esperança no “fim da guerra, quando poderemos focar no mercado civil de 200 mil drones que Putin disse serem necessários”.
A família Orlan é desenhada para reconhecimento, designação de alvo e coleta de informações eletrônicas e telemáticas. Cada modelo 10, o mais comum, sai entre R$ 430 mil e R$ 600 mil, na estimativa do Rusi.