A revolução bolchevique continua no imaginário popular socialista como o maior evento político do comunismo. Podemos dizer que, em matéria de Revolução, os seguidores de Lênin fizeram quase tudo o que Marx esperou, da dominância completa do aparato estatal ao terror assassino dos revolucionários. A Revolução que culminou no terror stalinista, no Holodomor e no muro de Berlim é com certeza um dos eventos que mais impactaram a humanidade no último século. Distantes há 104 anos do evento, muitos especialistas escreveram e destrincharam as veias de tal evento, mas os relatos pessoais daqueles dias continuam sendo os mais urgentes de serem lidos, na minha modesta opinião.
Ler os escritos dos que viveram os eventos do século 20 continua sendo minha fonte predileta de pesquisa, ainda que tais relatos possam estar marcados pelo fanatismo ideológico ou pelo ceticismo crítico, a áurea que circundava aqueles dias, aquele pedaço de história mantido vivo na conserva da biografia, somente pode ser plenamente guardada num relato pessoal de quem viveu aqueles fatos.
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um dos mais competentes pesquisadores sobre União Soviética, o historiador inglês Orlando Figes escreveu Sussurros: a vida privada na Rússia de Stalin. Trata-se de uma das obras mais sensacionais sobre o tema “Rússia sob Stálin” já escritas. Mas Sussurros não nos traz, para além do interesse acadêmico e jornalístico, para a pele de um russo perseguido, caçado e humilhado pelo aparato de Stálin como fez Arquipélago Gulag de Aleksandr Soljenítsyn.
Quem quiser conhecer a história profunda do ditador comunista da Romênia Nicolae Ceaușescu, sem dúvida precisa ler O fim dos Ceaușescu de Grigore Cartianu, mas, se quiser sentir os calafrios das celas comunistas e o ar abafado daquela ditadura sanguinária na Romênia, então você precisa ler Luvas vermelhas, livro que traz os relatos perturbadores Eginald Schlattner, um homem comum que teve a sua vida e psique trucidadas pelo Estado policialesco de Ceaușescu.
Mais do que um relato “contra a Revolução bolchevique”, a grandeza da obra está em nos mostrar aquilo que costumeiramente foge dos livros que abarcam essa temática. Isto é, as impressões de senso comum daqueles que estavam vivendo a Revolução e os “dias malditos”
Neste mês de novembro, acaba de ser lançado, pela editora Carambaia, Dias malditos, do primeiro russo laureado com prêmio Nobel de literatura, em 1933, Ivan Aleksêievitch Búnin. Com tradução direta de Márcia Vinha ‒ o livro sai pelo selo “Ilimitada” da referida editora. A obra foi inicialmente lançada em 1925, em folhetins no jornal russo ‒ editado e lançado na França ‒ Vozrojdiênia (Renascimento). As edições do jornal com os textos de Búnin se estenderam até 1927 e impactaram de forma definitiva a intelectualidade europeia. Basicamente o livro se trata das anotações do literato realizadas entre 1918 e 1919, durante a guerra civil que levaria a criação da União Soviética em 1922.
Com uma visão crítica que revela a percepção dos contrarrevolucionários daquele dia, Búnin descreve com força literária e requintado pudor histórico as impressões e ações dele, de familiares e de amigos naqueles dias incertos de balbúrdia política, mas também as palavras e percepções de estranhos que porventura ele encontrava nas estações de trem, nos hotéis e nos grupos de escritores dos quais ele era um dos participantes.
Mais do que um relato “contra a Revolução Bolchevique”, a grandeza da obra está em nos mostrar aquilo que costumeiramente foge dos livros que abarcam essa temática. Isto é, as impressões de senso comum daqueles que estavam vivendo a Revolução e os “dias malditos” que se seguiram. Conseguimos, assim, enxergar nas páginas a apreensão das senhoras e as críticas duras de uma pequena parcela dos literatos e intelectuais russos que se mantiveram firmes contra as ações bolcheviques, conseguimos ver a empolgação da força policial, a humilhação crescente de religiosos, o amadorismo assassino do exército vermelho que se formava, basicamente, de ex-militares e proletários raivosos, bem como o fanatismo socialista e anarquista que serviram como pirotecnia política ‒ panem et circenses ‒ para abafar as críticas à sede de poder e sangue de Lênin, Trotsky e seus seguidores.
li Dias malditos em poucas horas, comecei às 13 horas do último dia 18/11 e, às 18, já havia terminado de uma só batida. Não se trata, assim, de um texto denso e empolado ‒ apesar de faltar aquele trilho de condução do qual falei há pouco.
A Revolução Bolchevique é inteiramente vista a partir de uma perspectiva cética e crítica, algo como uma baderna infantil, só que gerenciada por homens armados, capazes de matar freneticamente em nome de sua ideologia. Logo na primeira metade do livro, encontramos o autor e vários outros indivíduos, de estranhos a amigos, que contam explicitamente com a invasão alemã para devolver à Rússia uma monarquia parlamentar; lá pela metade, vemos uma clara desilusão com os enfretamentos aos bolcheviques. Já pelo final, a pena de Búnin sendo usada como espada contra os socialistas que transformaram seu país num matadouro político e campo de testagem ideológica. O livro é dividido basicamente em três partes, contém as anotações de Búnin enquanto estava em Moscou, depois em Odessa e, por fim, um posfácio assinado pela tradutora onde ela aclara um pouco mais a obra e o autor.
Esse é um dos poucos casos em que, relatos desse tipo, parecem caber realmente melhor em folhetins do que em livros. Não à toa, a sua primeira edição como livro foi lançada somente em 1936. Trata-se de uma leitura entrecortada que, por vezes, parece carecer de um trilho que conduza bem o todo da obra, todavia, como editor, reconheço que se trata de um mal do próprio estilo da obra, algo que simplesmente não dava para ser remediado. Para aqueles que já conhecem a Revolução Russa com certa propriedade, que minimamente já leram, por exemplo, o ótimo e curto livro de Richard Pipes, História concisa da Revolução Russa, com certeza o relato de Búnin se apresentará como um farolete apontado para aqueles cantos escuros e insondados da Revolução Russa, aquelas vielas estreitas que os especialistas, por mais esgrimados que sejam, não visitaram com suas erudições e observações de bibliotecas. Como testemunho, li Dias malditos em poucas horas, comecei às 13 horas do último dia 18/11 e, às 18, já havia terminado de uma só batida. Não se trata, assim, de um texto denso e empolado ‒ apesar de faltar aquele trilho de condução do qual falei há pouco.
A editora Carambaia tem um catálogo realmente diverso que merece nota. Seus livros, por vezes, passam despercebidos pelos leitores conservadores e liberais. Suas edições vão além de uma militância afobada ‒ aquilo que se vê com muita facilidade em editoras semelhantes de médio porte. Em seu catálogo, por exemplo, está Lasca, Vladímir Zazúbrin, um dos livros de ficção mais agonizantes que li sobre o terror stalinista ‒ livro, aliás, que já resenhei para a Revista Oeste ‒, além do já mencionado Arquipélago Gulag, etc.
Dias malditos era, com certeza, uma daquelas dívidas literárias que o universo editorial brasileiro tinha. Talvez pelo seu teor corrosivo e profundamente eloquente, a obra tenha sido solenemente ignorada até aqui pela militância esquerdista que habita e inunda o mundo editorial nacional. O livro que toda estante de um curioso, estudante, bibliófilo, historiador ou erudito, deve ter.