O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, proferiu um duro discurso na celebração dos 80 anos do Dia D, a invasão da Normandia pelas forças aliadas ocidentais que liberou a França do jugo nazista. Ele comparou a ameaça de Adolf Hitler às ações de Vladimir Putin na Guerra da Ucrânia.
“As forças das trevas nunca desaparecem. A Ucrânia foi invadida por um tirano e nunca se rendeu”, afirmou, defendendo a união da Otan, o clube militar criado pelos EUA em 1949 para proteger a Europa Ocidental do maior seu principal aliado na Segunda Guerra Mundial, a União Soviética.
“Hitler pensava que as democracias eram frágeis, que o futuro era dos ditadores”, discursou o americano sobre o líder nazista (1889-1945). “Não se engane: nós não iremos nos curvar, não podemos nos render aos valentões, isso é simplesmente impensável. Se o fizermos, a liberdade será subjugada, toda a Europa estará ameaçada.”
“Nós devemos nos perguntar: iremos novamente nos levantar contra o mal, contra a brutalidade esmagadora? Vamos nos unir pela liberdade, defender a democracia? Vamos nos unir? Minha resposta é sim, e só pode ser sim”, disse.
O tom era previsível, dado o grau da crise entre o Ocidente e Moscou, na esteira da invasão de 2022 da Ucrânia. Ao traçar paralelos entre 1944 e 2024, Biden também sinalizou à China. “Nós não vamos nos afastar [do apoio a Kiev]. Se o fizermos, [Putin] não vai parar ali. Autocratas no mundo todo estão olhando atentamente”, disse ele, que já admoestara o líder chinês Xi Jinping sobre o tema.
O discurso vem na esteira de um renovado apoio ocidental a Kiev, após quase seis meses de protelações devido ao conflito no Congresso americano entre os democratas de Biden e o republicanos do seu rival na eleição em novembro Donald Trump.
Os EUA e países europeus passaram a autorizar ataques ucranianos com armas ocidentais contra alvos russos, e novos pacotes de ajuda foram anunciados. Analistas, contudo, acreditam que talvez seja tarde para salvar a Ucrânia de uma temporada de más notícias no campo de batalha.
A fala de Biden também mirou Trump, um crítico da Otan durante sua passagem pela Casa Branca (2017-2021). Falando sobre a necessidade de união entre aliados, disse: “Espero que a América nunca esqueça. O isolamento não é a resposta hoje”, afirmou.
O americano e seu colega francês Emmanuel Macron participavam da celebração dos 80 anos da maior operação aeronaval da história, que ocorreu em cinco praias da Normadia, no Memorial Americano do Dia D.
Macron, que tem tentado liderar uma posição mais dura da Otan ante Putin, deixou as palavras mais incisivas para Biden. O francês fez um discurso mais emocional, louvando aqueles que, em suas palavras, salvaram a França e a Europa. Depois, condecorou 11 veteranos americanos da invasão.
Os líderes irão depois a um evento ampliado, na praia mais mortífera da invasão, codinome Omaha —ali, até 90% dos soldados da primeira leva de desembarque comandada pelos EUA lá foram mortos. Ao fim de 6 de junho de 1944, havia 2.500 baixas americanas no local, entre mortos, feridos e desaparecidos, 25% do total da invasão.
Mais cedo, no evento do Memorial Britânico, o rei Charles 3º proferiu um discurso mais solene, remetendo à conta paga pelo império centrado em Londres, que envolveu mais soldados e marinheiros do que qualquer outra nação no Dia D. Aludindo ao presente, disse: “Nós lembramos a lição que chega a nós, de novo e de novo, através das décadas: Nações livres devem se unir para se opor à tirania”.
As falas espelham a tensão geopolítica inaudita na Europa desde a Guerra Fria, com a Rússia guerreando na invadida Ucrânia e os temores de uma escalada que oponha as maiores potência nucleares do planeta.
Desde a Guerra Fria, as celebrações do Dia D explicitavam rivalidades com a então União Soviética e mesmo entre os aliados ocidentais, caso da ausência do presidente francês Charles de Gaulle do evento dos 20 anos, em 1964.
De forma geral, os soviéticos substituíram os nazistas na retórica da Otan como ameaça ao continente. O fim do império comunista em 1991 mudou o cenário, e em 2004 e 2014 Vladimir Putin, tornou-se o primeiro líder russo nas celebrações.
O Dia D em si é lateral na historiografia russo-soviética, que considera a abertura da segunda frente na guerra europeia um esforço para apoiar a vitória que já se desenhava nas grandes batalhas de 1942-43 no leste. Putin leva tão a sério isso que criminalizou narrativas alternativas na Rússia.
Agora o russo voltou a ser o vilão, em especial após invadir a Ucrânia em 2022.
Na véspera, ele havia retomado sua tradicional rotina de sístole e diástole retóricas. Após semanas de ameaças atômicas, o presidente russo disse que não tem planos de atacar a Otan e sugeriu que sua retribuição ao emprego de armas ocidentais ora autorizadas por EUA e aliados contra seu país pelos ucranianos deverá ser indireto.
Falando a jornalistas em São Petersburgo, Putin disse que tem direito de reagir, mas que pode fazer isso equipando algum adversário do Ocidente com armas capazes de alvejá-los. Isso dá uma nova dimensão, global, às ameaças, já que no Oriente Médio há aliados antiocidentais de sobra para Moscou.
A Rússia também anunciou exercícios navais no Caribe, com seus parceiros Cuba e talvez Venezuela, movimento que foi minimizado em Washington. De todo modo, encurralado por sua própria retórica, Putin retirou por um momento a carta nuclear da mesa.