Quando a maior epidemia de ebola da história eclodiu no oeste da África, em 2014, não existia remédio nem vacina para o vírus que mata em até 90% dos casos. Foram mais de 11,3 mil mortos na Libéria, Guiné e Serra Leoa ao longo de dois anos, e a doença chegou aos Estados Unidos, à Espanha e à Itália. Dez anos depois, existem dois medicamentos e duas vacinas –mas os remédios não estão disponíveis para quem mais precisa.
Os tratamentos foram desenvolvidos por duas farmacêuticas americanas, e a quase totalidade está em um estoque de segurança nacional dos EUA. Apenas um terço dos pacientes que contraíram a doença após a aprovação dos fármacos tiveram acesso ao tratamento, segundo o estudo “A evolução das medidas contra o vírus ebola: lições aprendidas e próximos passos”, publicado na revista científica Vaccines. De 158 pacientes contaminados em cinco epidemias na República Democrática do Congo (RDC) e Guiné de 2020 a 2022, apenas 53 receberam os tratamentos, que reduzem significativamente a mortalidade da doença.
O vírus ebola afeta a coagulação do sangue e leva a hemorragias descontroladas –em fase avançada, muitos doentes sangram pela boca, nariz, olhos e outros orifícios do corpo. Os infectados também podem ter diarreia, vômitos e convulsões. Em média, a mortalidade fica em 50%, mas em epidemias passadas variou de 25% a 90%.
Ebola não é gripe nem Covid. Não se contrai o vírus pelo ar. A contaminação se dá por contato com fluidos do corpo (sangue, suor, vômito e saliva), manuseio de animais infectados e de objetos com fluidos de alguém contaminado. O ebola entra no corpo por microcortes na pele ou ao se tocar os olhos, boca ou nariz. Só os pacientes sintomáticos transmitem a doença, diferentemente da Covid.
O vírus foi identificado pela primeira vez em 1976, em uma epidemia na República Democrática do Congo (antigo Zaire), em vilarejo próximo ao rio Ebola –daí o nome dado ao microorganismo. Acredita-se que os morcegos sejam um dos reservatórios do vírus.
O ebola faz parte das chamadas “doenças negligenciadas”, que atingem majoritariamente populações muito pobres. Assim, não oferecem incentivos econômicos para as farmacêuticas investirem em pesquisa de drogas. Remédios como o Viagra, para impotência, e drogas contra colesterol representam muito mais lucros do que ebola ou malária.
Foi só durante a epidemia de 2014, quando o ebola chegou até os países ricos, que os investimentos em pesquisa de medicamentos contra o vírus cresceram de forma significativa.
Até 2020, o único tratamento disponível era paliativo –deixar o paciente confortável e hidratado e torcer para ele se recuperar.
Levou 44 anos para as empresas desenvolverem os dois remédios existentes hoje. Em outubro de 2020 foi aprovado o Inmazeb, da Regeneron Pharmaceuticals, uma combinação de três anticorpos monoclonais. Em dezembro do mesmo ano, o Ansuvimab/Ebanga, da Ridgeback Biotherapeutics, um anticorpo monoclonal que age sobre uma proteína do vírus ebola Zaire. Os medicamentos agem como os anticorpos naturais do corpo humano, impedindo que um vírus se multiplique na pessoa infectada.
Existem duas vacinas –a Ervebo, da Merck, aprovada em dezembro de 2019, e a Zabdeno e Mvabea (Janssen), autorizada em julho de 2020.
A OMS administra o Grupo Internacional de Coordenação (ICG, na sigla em inglês) para fornecimento de vacinas, que distribui imunizantes contra cólera, meningite, ebola e febre amarela. O ICG já forneceu 7.370 doses de vacina contra o ebola para a RDC e tem 500 mil doses disponíveis para serem enviadas nos casos de epidemia.
Ao contrário das vacinas contra o ebola, os remédios não estão disponíveis por meio de um estoque global, que agilizaria o processo de envio.
A distribuição depende da boa vontade do governo americano e das farmacêuticas –que já forneceram as drogas antes, mas são decisões caso a caso, e levam tempo.
“Sabemos quais países têm alto risco para ebola. É essencial ter um estoque estratégico na RDC, por exemplo, onde ocorreu a maioria dos casos nos últimos anos, ou um estoque internacional administrado pela OMS, como é feito com as vacinas”, diz Julien Potet, assessor de políticas para doenças negligenciadas da ONG Médicos sem Fronteiras.
Segundo ele, é crucial que os medicamentos ou vacinas cheguem aos países no início das epidemias, para quebrar a cadeia de transmissão e salvar os doentes. “É necessário implementar um mecanismo mais sistematizado e algo especial para o país que mais contribuiu para os testes clínicos.” Esses testes, que possibilitaram a aprovação dos dois remédios, foram realizados de 2018 a 2020 na República Democrática do Congo, onde a população tem dificuldade para acessar as drogas.
Além disso, o custo do tratamento é proibitivo. O preço exato pago pelo governo americano não é divulgado, mas a MSF estima em US$ 6.900 (R$ 36 mil) por pessoa. As empresas receberam milhões em recursos públicos para desenvolver as drogas, principalmente do governo americano.
“É preciso fazer um preço mais baixo para os países africanos”, diz Potet. Ele acrescenta que a dificuldade para obter os medicamentos não é a única explicação para a mortalidade ainda muito alta da doença. A situação na RDC é difícil, há conflitos e a população não confia no governo, então muitos não buscam assistência médica, afirma.
Em 2014, as autoridades sanitárias cometeram muitos erros. “Por quase seis meses, o mundo tentou ignorar a epidemia, e ela foi ficando cada vez mais fora de controle. Foi só no meio de 2014 que outros governos finalmente começaram a ajudar. Mas pagamos um preço alto por ter sido tão tarde”, declara o epidemiologista Michel Van Herp, especialista em ebola.
Muitas coisas mudaram. Além dos medicamentos e das vacinas, os médicos tentam tornar o tratamento do ebola mais humanizado. Querem cuidar dos pacientes em hospitais tradicionais em vez de centros especializados em ebola, onde não se podiam ver os enfermos nem receber visitas. Isso gerava desconfiança na população, que resistia ainda mais a buscar ajuda médica.