Movimentos contraditórios entre si marcaram o cenário das políticas sobre drogas no mundo no início de 2024. Indicações de avanços e recuos em relação às leis relacionadas à descriminalização acirraram o debate sobre como lidar com a questão dos entorpecentes da forma mais eficiente, com foco nos direitos humanos e na saúde pública.
O maior recuo aconteceu em fevereiro, quando Oregon, nos Estados Unidos, voltou atrás de uma decisão de ser o primeiro estado americano a descriminalizar todas as drogas. Um mês depois, entretanto, a Alemanha deu um aceno no sentido oposto ao legalizar, ainda que parcialmente, o consumo recreativo de maconha.
Enquanto os defensores da descriminalização comemoram o sinal alemão, os adeptos da guerra às drogas usam o caso americano para indicar o fracasso da liberação e defender a proibição total.
Para especialistas, é cada vez mais evidente que é preciso associar políticas sociais a qualquer medida legal sobre as drogas a fim de garantir o resultado mais positivo para a sociedade.
Recuo americano
A decisão de Oregon reverteu uma aprovação eleitoral de 2020 que liberava a posse de pequenas quantidades de todas as drogas e expandia os serviços sociais e de saúde para usuários.
Apesar de muitos especialistas defenderem que a política no estado americano na verdade deu certo, cenas de uso de drogas em público, o aumento do número de pessoas em situação de rua e o crescimento do registro de overdoses levaram o governo a mudar de rumo. A partir de setembro, o porte de drogas voltará a ser crime punido com prisão.
Assim como Oregon, relatos de dúvidas sobre a descriminalização estão ganhando destaque na imprensa internacional. Segundo uma reportagem da revista The Economist, há uma redução no ritmo de abertura e mudança das leis, enquanto políticos e a população de países antes vistos como modelo, como Portugal, Suécia e Holanda, mostram-se preocupados com a criminalidade que continuam a ver como associada às drogas. Aliado ao avanço da ultradireita no mundo, isso poderia indicar um refluxo das políticas desse tipo.
Para ativistas e pesquisadores de leis sobre drogas, entretanto, a reversão da lei em Oregon fez da descriminalização um bode expiatório para todos os problemas do estado e manipulou informações para alimentar o movimento proibicionista.
“O problema é que a descriminalização deve vir acompanhada de políticas sociais e de tratamento de saúde para os usuários, mas muitos países estão cortando o orçamento enquanto mudam a lei de drogas”, explica Ian Hamilton, pesquisador da Universidade de York, no Reino Unido. “Foi o que aconteceu em Oregon. Temos uma abertura maior para drogas, mas falta apoio social e de saúde. Essa não é uma boa receita”, afirma.
De acordo com Theshia Naidoo, diretora de política externa da ONG americana Drug Policy Alliance, fatores externos geraram os problemas da descriminalização em Oregon.
Segundo ela, o aumento de overdoses ocorreu por conta da crise do opioide fentanil, que afeta o país inteiro, e não teve relação com a lei estadual. Além disso, o fim da pandemia de Covid-19 gerou uma mudança na legislação que lida com moradia no estado, o que facilitou o despejo de inquilinos e aumentou o número de pessoas em situação de rua —também um problema em âmbito nacional.
“Usar Oregon como exemplo do fracasso de descriminalização é uma manipulação da realidade. O que houve foi falta de investimento e atraso no envio de verbas para oferecer os serviços necessários para dar apoio à população”, diz Naidoo.
A opinião é compartilhada pela professora de direito da Universidade de Essex, também no Reino Unido, Julie Hannah. “O fracasso não foi a descriminalização, mas a ausência de políticas sociais mais amplas”, diz. “Se nos concentrarmos apenas na descriminalização e ignorarmos reformas sociais mais amplas, como a habitação, a saúde e a segurança, surgirão outros problemas.”
A questão, dizem os especialistas, é que o retrocesso americano revelou a necessidade de aplicar políticas sociais de forma paralela, para garantir o sucesso da medida. Sem essas medidas de apoio, avaliam, o processo de descriminalização tende a não surtir os efeitos esperados.
Ainda assim, esse tipo de movimento nos EUA pode influenciar o debate no Brasil.
O STF (Supremo Tribunal Federal) está julgando um caso que pode deixar de tratar como crime a posse de pequenas quantidades de maconha. Paralelamente, uma proposta que criminaliza o porte e a posse de drogas está em discussão no Congresso e foi aprovada na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, com apoio de grande parte dos brasileiros. Uma pesquisa Datafolha apontou que 67% da população se diz contra a descriminalização.
Avanço global
Apesar da sensação de desaceleração do processo de abertura, organizações e acadêmicos que se dedicam a estudar políticas de drogas em todo o mundo afirmam que o movimento internacional ainda é mais favorável à liberação.
“Se há uma tendência global, é de avanço acelerado da descriminalização”, diz Steve Rolles, analista da fundação britânica Transform Drug Policy. “Até 12 anos atrás, o que havia era proibição total na maioria dos países. Agora há avanços, e quase meio bilhão de pessoas vivem em países em que há algum modelo de descriminalização”, explica.
“Cada vez mais países percebem que a proibição não traz benefícios à saúde e ao bem-estar”, diz Juan Fernandez Ochoa, que atua em campanhas da rede IDPC (International Drug Policy Consortium). “A própria ONU recomenda a descriminalização.”
O fluxo de regulamentação é irregular, entretanto, e cada país tem adotado um modelo diferente em relação à questão.
Há o caminho da descriminalização, que evita prisão e condenação de usuários, mas há também o da liberação para uso de drogas específicas. Além disso, a maioria tem focado apenas a questão da maconha, e não há um consenso sobre qual seria a melhor forma de fazer esta transição.
Neste sentido, a liberação da maconha na Alemanha é apontada como um passo importante. O país determinou em março que adultos podem transportar e cultivar a droga. Este sinal pode até mesmo influenciar uma ampliação do debate em outras partes do mundo.
A lei alemã ainda é alvo de críticas por não ter uma contrapartida social muito bem definida. Ainda assim, o governo prometeu uma campanha sobre os riscos do consumo, destacando que a maconha continua proibida para os menores de 18 anos e que o uso é proibido a menos de cem metros de escolas, creches e parques infantis. Então não gera tanta preocupação quanto Oregon e tem potencial de dar peso às decisões contra a proibição.
“Trata-se de um país-chave da União Europeia, que pode vir a se tornar um modelo para que mais governos levem adiante a descriminalização”, explica Rolles. A reforma posiciona a Alemanha entre os países mais permissivos com a maconha na Europa, ao lado de Malta e Luxemburgo, que legalizaram o consumo recreativo nos últimos anos.