Em cem dias de guerra, os ataques aéreos israelenses já mataram 1% da população da Faixa de Gaza. São mais de 23,8 mil mortos em um território que abriga 2,3 milhões de pessoas. Isso nas estimativas que não levam em conta os milhares de desaparecidos sob os escombros.
São compreensíveis o desalento e a fúria dos palestinos que vivem em Gaza, na Cisjordânia e na sua volumosa diáspora, inclusive no Brasil. Eles acusam o mundo de permitir tamanha destruição, que eles chamam de genocídio do seu povo. Já não acreditam no sistema político global, que deveria evitar uma campanha militar desproporcional como a atual.
Nas ruas, nas universidades e nas redes sociais, palestinos continuam a pedir que governos e entidades como as Nações Unidas pressionem por um cessar-fogo imediato. Também denunciam uma economia do sofrimento em que o valor das vítimas varia de acordo com sua cor e sua religião. Lembram-se do quanto o mundo se doeu com o sofrimento dos ucranianos quando a Rússia invadiu o país há quase dois anos.
Um trecho do Alcorão, o livro sagrado do islã, sugere que matar um indivíduo equivale a matar toda a humanidade. O que dizer, então, de uma guerra que vitima cerca de 230 pessoas por dia, na sua maioria mulheres e crianças? Ainda mais quando defender o cessar-fogo em Gaza é considerado um arriscado gesto político, prejudicial a uma carreira.
Muitos jornalistas e acadêmicos só escrevem sobre esse assunto nas redes sociais a conta-gotas, com o justificado receio de serem acusados de apoiar o terrorismo. Recebem em suas contas pessoais mensagens que os descrevem como antissemitas por criticar uma guerra —algo que deveria ser um imperativo moral, depois de tudo o que nós aprendemos.
Quem apoia a continuidade da guerra sugere que ela é justa por alvejar o Hamas. Foi essa facção palestina que realizou os ataques terroristas de 7 de outubro, que mataram 1.200 em Israel e motivaram o revide em Gaza. Os atentados são condenáveis —e foram de fato condenados de modo amplo. A principal liderança do Hamas, porém, vive no exílio e não sofre agora. Ismail Haniyeh, presidente do grupo, está abrigado no Qatar.
Enquanto isso, segundo a conta da ONU, 1,9 milhão de pessoas foram deslocadas dentro da Faixa de Gaza pelos bombardeios israelenses, o que equivale a quase 85% de toda a população. A cidade de Rafah, na fronteira com o Egito, tinha 280 mil pessoas antes do conflito. São agora cerca de 1 milhão nessa região, à espera da rara oportunidade de escapar. Israel planeja controlar essa região, que é por enquanto o único ponto de fuga possível.
Nos últimos meses, a Folha manteve contato frequente com palestinos em Gaza. As mensagens enviadas —quando havia eletricidade, internet e telefone— eram desalentadoras. Muitas vezes eram vídeos e áudios registrando bombardeios ao redor das casas. Muitas vezes, também, as conversas terminavam com despedidas quase definitivas, de quem imagina que vai morrer antes do próximo contato.
Não eram mensagens dramáticas. Eram, mais do que isso, expressões de um cansaço e da falta de perspectiva. Quase como se a morte fosse um alento para quem não tem cobertor para cobrir um bebê de colo no frio, caso de uma brasileira.
A Organização Mundial da Saúde diz que 23 dos 36 hospitais de Gaza já não têm capacidade de funcionar, ou seja, não conseguem tratar os ferimentos causados pelos ataques, que seguem acontecendo. Também não há como lidar com as doenças que se espalham com a escassez de água potável. Outra brasileira comemorou seu aniversário improvisando uma refeição em torno de uma pequena fogueira, em um descampado.
Há ceticismo quanto às informações do dano humano e material, que dependem em parte das informações do governo radical do Hamas. A imprensa tem mostrado, porém, imagens de satélite registrando o desaparecimento de regiões inteiras da Faixa de Gaza, reduzidas a escombros de concreto cobertos por uma poeira cinzenta, triste e estéril.
Nem o fim do conflito nem a reconstrução da infraestrutura de Gaza vão resolver as questões de base que estão por trás do conflito. Essas questões, vale dizer, não são a religião nem uma suposta incapacidade palestina de se “modernizar” ou de se “civilizar”.
A incapacidade é de todos nós, que há décadas falhamos em encontrar uma solução justa para uma população deslocada que reclama há décadas o direito a um Estado.
Se puder haver uma lição neste episódio, que seja a de que é preciso repensar o arranjo das coisas, para que nós não tenhamos que relatar mais um atentado terrorista nem mais uma guerra daqui a alguns anos.