Intensificados pelo aquecimento global, os eventos climáticos extremos —como grandes tempestades, ondas de calor, secas e inundações— já causam um forte fluxo migratório, tanto dentro das fronteiras nacionais quanto com destino a outros países. Nesse cenário, tem ganhado força o debate sobre os chamados refugiados climáticos.
Essa nomenclatura, contudo, é motivo de debates. O termo vem sendo usado por ambientalistas desde a década de 1980, sobretudo como sinalização de que as causas ambientais são um embasamento legítimo para os compromissos de acolhimento. A comunidade internacional, no entanto, tem sido mais refratária à ideia de refugiados do clima.
Principal instrumento legal sobre o tema, a Convenção de Refugiados de 1951, revisada em 1967, não inclui as questões climáticas entre os motivos válidos para proteção.
Pelo documento, são elegíveis apenas as pessoas que fogem de guerra, violência, conflito ou perseguição e cruzaram uma fronteira internacional em busca de segurança.
Tendo em conta que a maioria dos deslocamentos desse tipo acontece ainda dentro do território dos países —como ocorre agora no Rio Grande do Sul, após enchentes que deixaram mais de 72 mil desabrigados—, o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) recomenda o uso da terminologia “deslocados internos em razão das mudanças climáticas”, em vez de refugiados ambientais ou climáticos.
“Em termos linguísticos e sociais, refugiado ambiental ou refugiado climático é mais impactante e chama mais atenção do que migrante ou deslocado ambiental, porque a percepção social é de que pessoas refugiadas estão em situações de grande perigo e, por isso, precisam de proteção com urgência”, diz Carolina Claro, professora do Instituto de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília).
Pesquisadora do tema há duas décadas, ela explica que não há consenso na comunidade internacional para definir o conceito, mas que há um número crescente de trabalhos e pesquisadores que tentam definir as características desses movimentos migratórios e por que essas pessoas precisam de uma proteção especial.
“Migrante ou refugiado ambiental é aquela pessoa que migra, para dentro de seu país ou para fora dele, por motivos ambientais naturais, antropogênicos ou de causas mistas. Essa migração geralmente é considerada uma migração forçada. Ela pode ocorrer por períodos longos ou curtos de tempo”, refere, sobre as linhas gerais da nomenclatura.
Em muitos casos, a não inclusão das questões ambientais na Convenção dos Refugiados é usada pelos países como motivo para recusa de refúgio a quem vem de fora com essa justificativa.
Segundo o Acnur, ainda que “o deslocamento exclusivamente no contexto das mudanças climáticas ou desastres naturais não esteja coberto pela convenção de 1951, ele pode se aplicar quando o risco de enfrentar perseguição ou violência aumenta” devido a esses fatores.
Isso aconteceu, por exemplo, em 2021, no norte de Camarões, quando a escassez de recursos hídricos intensificada pelas mudanças climáticas desencadeou conflitos entre pastores e pescadores. Centenas de pessoas foram assassinadas, e outras milhares fugiram em direção ao vizinho Chade.
Carolina Claro, da UnB, destaca que, independentemente da convenção, alguns países já incluíram explicitamente as questões ambientais em suas políticas de acolhimento. Na América Latina, é o caso de Bolívia e Cuba.
Já outras nações criaram o conceito mais genérico de refúgio por “ajuda humanitária”, que pode englobar esse perfil de migrante. Finlândia, Noruega, Suécia, Argentina e o próprio Brasil estão nesse grupo.
Embora seja uma maneira de atribuir apoio, a ausência da inclusão formal pode deixar margem para diferentes interpretações e discricionariedade.
“Muitas vezes, como no caso do Brasil, essa acolhida humanitária vai depender de um decreto presidencial que reconheça a situação de emergência humanitária. Se o chefe de Estado não quiser, ele não vai publicar esse decreto”, destaca.
“Pessoas refugiadas vítimas já sofrem um preconceito enorme. Paralelamente, os países também têm uma resistência enorme em assumirem responsabilidades com as mudanças climáticas. Imagina então quando você junta as duas coisas e tem um refugiado por motivos ambientais? Aí piora, porque ninguém quer de fato se responsabilizar.”
Ainda que os grandes desastres naturais possam provocar fluxos intensos de pessoas em um curto espaço de tempo, as migrações ambientais não são consideradas restritas a esses contextos. Há consequências das alterações climáticas, como o processo de desertificação ou de salinização de rios, que podem levar anos se desenvolvendo, mas que também acabam provocando migrações.
Essas e outras questões fazem também com que seja difícil quantificar o número de pessoas afetadas. Especialistas reconhecem que a maior parte dos deslocamentos acontece dentro das fronteiras dos próprios países, mas nem todas as nações têm ferramentas para contabilizar esses fluxos.
Mesmo tendo em conta a possível subnotificação, os desastres naturais já causam oficialmente mais deslocamentos internos do que as guerras e conflitos no mundo.
Em 2023, cerca de 26,4 milhões de pessoas saíram de suas casas por esses motivos, contra 20,5 milhões motivadas pela violência, de acordo com o recém-lançado Relatório Global sobre Migrações Internas, que compilou dados fornecidos pela OIM (Organização Internacional das Migrações).
O Brasil aparece como o sexto país com o maior número de deslocados internos por desastres naturais no ano passado, com cerca de 745 mil afetados. A lista é liderada pela China, com 4,7 milhões.
Ainda que o Brasil tenha boas ferramentas de monitoramento de dados, medir os impactos migratórios das enchentes no território gaúcho pode ser um desafio para o país.
“Nós sabemos quantas pessoas estão em abrigos no Rio Grande do Sul. São mais de 200 abrigos só em Porto Alegre. Sabemos quantas pessoas saíram de casa, quantas faleceram. Sabemos minimamente algumas coisas hoje, mas não vamos saber, mais adiante, quantas pessoas vão sair do estado porque não vão ter mais condições de morar lá”, diz a pesquisadora.
Na avaliação da professora, as pessoas no Rio Grande do Sul poderiam ser enquadradas como refugiados climáticos.
“Elas entram na situação de migrantes por motivos ambientais por causas mistas. Temos fenômenos naturais, sim, mas que estão associados às causas antropogênicas, que são ligadas, entre outras coisas, à flexibilização da legislação ambiental“, avalia.