Se estivesse vivo, Deng Xiaoping completaria na quinta-feira (22) 102 anos. Enquanto esteve entre nós, o líder conduziu a difícil tarefa de comandar um país empobrecido, traumatizado por anos de radicalismo e políticas agrárias falidas e virtualmente isolado do resto do mundo. A forma como escolheu fazê-lo deu origem a tantas análises diferentes sobre quem Deng foi que, vez ou outra, é importante lembrar de sua importância e do que ele significa para a China de 2024.
Deng foi um visionário. Foi cruel com alguns e leniente com a corrupção de outros. Soube enxergar nas feridas abertas pela Revolução Cultural um caminho para um Partido Comunista menos ideológico e mais preocupado com problemas da vida real. Deng era aberto o suficiente para autorizar seus correligionários a experimentar, mas não hesitou na hora de escolher entre estabilidade e liberdade civil quando confrontado por ambas as opções durante o Massacre da Praça da Paz Celestial.
Ainda hoje há quem se pergunte como alguém pode ser tudo isso e não representar um poço de contradições. Em uma era de preto ou branco, certo ou errado, talvez nos falte a percepção de que as figuras mais influentes para o curso da humanidade quase sempre tenham sido ambos. A história é feita menos por heróis e mais por gente comum cheia de contradições —no que tange à história da China, poucos podem carregar um legado de importância semelhante a ele.
Há gente mais preparada e com mais espaço que eu para citar seus feitos históricos (a biografia escrita por Ezra Vogel é uma boa pedida), mas na semana da efeméride do seu nascimento, queria destacar ao amigo leitor como uma decisão de uma pessoa no momento certo pode ter impactos tão duradouros.
A China comunista aproveitou mal as lições de 1989. Enquanto Taiwan usou os protestos estudantis para dar fim às arbitrariedades da Lei Marcial apenas dois anos antes, os quadros do PC Chinês viram nas demandas dos manifestantes em Pequim um desafio à existência da legenda. Com a queda da União Soviética em 1991, puristas se convenceram que as reformas promovidas por Deng tinham ido longe demais.
A esta altura, Jiang Zemin já ocupava o cargo de secretário-geral do Partido e mesmo ele precisava dividir decisões e afazeres com gente que detestava. Deng já não apitava como outrora e, como último ato antes da aposentadoria, deu um passo simples, mas simbólico: resolveu viajar para a o sul da China, berço das suas reformas, em janeiro de 1992.
Foi de início quase boicotado, mas conforme a viagem progredia, cresciam também suas frases de efeito, cuidadosamente curadas para a máquina de propaganda. Daí saíram alguns de seus bordões mais famosos, como “quem não apoia reformas não merece a liderança”, “enriquecer é glorioso” e “faça mais e perca menos tempo com conversa fiada”.
Deng passou por Wuhan, Changsha, Shenzhen, Zhuhai, Guangzhou e Xangai. Ao longo do caminho, aos poucos ia fazendo barulho e atraindo respaldo popular. Não tinha o mesmo poder do passado, mas sua retórica tornou-se tão incisiva que, dado momento, foi impossível para a mídia estatal ignorá-lo. E com ela, uma tempestade política no partido que solidificou o apoio entre correligionários e escanteou os inimigos.
Foram apenas algumas semanas que selaram o destino da China e sedimentaram o crescimento econômico impressionante que se seguiu. Resultado que não apagou as páginas sombrias da biografia de Deng, mas que lhe garantiram até hoje um assento na seleta lista dos que os chineses se acostumaram a chamar de “líderes supremos”.
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