Vinda do Togo, a refugiada Falilatou Sarouna chegou ao Brasil em 2014 determinada a construir uma vida melhor. Mas, em 2020, foi presa em uma megaoperação policial, e sua vida virou do avesso de novo. O caso vem sendo apontado por organizações, parlamentares e pesquisadores como injusto e um exemplo de racismo estrutural dentro do Judiciário brasileiro.
A togolesa foi sentenciada em agosto a 11 anos e três meses de prisão pelo crime de estelionato. Chegou a ficar seis meses detida no âmbito da Operação Anteros, que desvendou um esquema transnacional de golpes online. Foram ao menos 437 vítimas no Brasil, com prejuízo estimado em R$ 24 milhões. Falilatou foi condenada em primeira instância e aguarda a tramitação de recursos em liberdade.
O caso se arrasta há quase três anos, e a togolesa diz ser inocente. Segundo a defesa, Falilatou foi vítima de golpes e teve dados roubados por criminosos que teriam aberto contas bancárias em seu nome, sem seu conhecimento. No período em que ficou presa, afirma ter desenvolvido problemas físicos e mentais que atrapalham o dia a dia e o trabalho como vendedora ambulante de roupas no Brás, em São Paulo.
“Parece uma ferida que nunca acaba. Eu choro toda hora e não consigo dormir. À noite acordo porque parece que alguém quer me pegar. Eu saio para trabalhar e parece que a polícia está atrás de mim. Acho que estou ficando louca”, diz Falilatou. “Eu não saí do meu país para roubar. Não fiz nada e peço socorro.”
Segundo denúncia da Polícia Civil, os criminosos usavam perfis falsos em redes sociais ou sites de namoro para se relacionar virtualmente com as vítimas. Depois, as extorquiam sob ameaça de divulgar fotos íntimas.
Falilatou foi acusada de ser uma das correntistas da organização criminosa, ou seja, de emprestar suas contas para movimentar os valores ilícitos. Como prova, o Ministério Público apresentou boletins de ocorrência de vítimas em que a togolesa aparecia como titular de quatro contas.
Reportagem da Folha publicada em 2021 mostrou que as assinaturas nos contratos das contas foram feitas em letra cursiva, muito diferente da que consta em seu documento de identidade (que é basicamente um traço), assim como em seu contrato de locação e em outros documentos assinados por ela com reconhecimento em cartório. Falilatou é analfabeta.
O caso vem mobilizando parlamentares e organizações de direitos humanos. Regina Lúcia dos Santos, coordenadora do Movimento Negro Unificado, diz que Falilatou relatou problemas na coluna e desenvolveu síndrome do pânico desde que foi presa. Ela acredita que o caso teria tido um encaminhamento diferente se a ré fosse branca ou de outras nacionalidades que não africana.
Na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, o episódio ganhou a atenção da Bancada Feminista, mandato coletivo do PSOL, e do deputado estadual Eduardo Suplicy (PT), que esteve em uma audiência pública para discutir o caso em outubro passado.
“Sabemos que a xenofobia, o ódio ou rejeição a estrangeiros, especialmente aqueles que não são oriundos da Europa, constitui uma triste realidade. Infelizmente, isso se soma ao racismo estrutural atuante em nosso país”, disse ele na audiência.
Vitor Bastos, advogado que representa Falilatou sem remuneração, diz que a togolesa precisa de ajuda para operações bancárias e outras questões burocráticas. “Alguém pode ter aproveitado a situação de vulnerabilidade em função do analfabetismo. Quando ela chegou ao Brasil, precisou de muito auxílio”, diz. “Mas ela sempre teve uma única conta, não várias, e essa conta nem sequer aparece nas investigações.”
O advogado aponta o que seriam contradições nos posicionamentos dos dois juízes que assumiram o caso em fases diferentes. Em 2021, o magistrado teria negado a perícia das assinaturas com o argumento do princípio “in dubio pro reo”, ou seja, em caso de dúvida, o réu deve ser favorecido. A juíza que substituiu o primeiro magistrado também negou a perícia, mas por considerar o pedido impertinente.
Mesmo com a tramitação do processo, a refugiada continuou vítima de golpes, diz Bastos. Ele afirma que, neste ano, o dinheiro do Bolsa Família da togolesa foi desviado por vários meses em transações no aplicativo Caixa Tem, da Caixa Econômica Federal. Mas, sem saber ler nem escrever, ela nunca teve apps. Depois de fazer boletim de ocorrência, Falilatou agora só pode receber o benefício presencialmente em sua agência.
Ainda segundo a defesa, outros elementos sinalizariam sua inocência: o primeiro é que ela nunca levou uma vida compatível com alguém que ganha dinheiro com atividades fraudulentas —a acusação diz que mais de R$ 1 milhão passou por contas que estão no nome de Falilatou. Segundo testemunhas, porém, a refugiada acorda de madrugada para comprar roupas e revender o dia todo em uma calçada no Brás.
O segundo é que ela se apresentou voluntariamente na delegacia quando soube que a polícia a estava procurando. No local, Falilatou recebeu ordem de prisão. Bastos acredita ser improvável que um criminoso integrante de uma organização transnacional se apresente a uma autoridade policial.
Advogados que acompanham o caso dizem acreditar que houve um julgamento em bloco, sem análises individualizadas. No total, a Operação Anteros indiciou 210 pessoas. A defesa de Falilatou recorre da sentença, e Bastos promete ir às instâncias superiores ou acionar órgãos internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em caso de novos reveses. Não há data para o próximo julgamento.
A advogada Karina Quintanilha, que integra o Fórum Fronteiras Cruzadas e pesquisa o caso para seu projeto de doutorado, aponta ainda violações nas leis relacionadas aos direitos dos migrantes. Falilatou, que fala um dialeto de Togo e um pouco de francês, não teve tradutor em nenhum momento do processo e não foi acompanhada pela embaixada de seu país.
Na sentença, a juíza Renata Esser De Souza escreveu que o interrogatório “transcorreu normalmente, com perfeita compreensão, pela ré, das perguntas que lhe eram feitas”. Ao conversar com a Folha, Falilatou demonstrou dificuldades para entender os questionamentos.
Em nota, o Ministério Público afirma que a denúncia decorreu de extensa investigação conduzida pela Polícia Civil. Também diz que todos os acusados tiveram a oportunidade de se defender.
Após sair da prisão em 2021, Falilatou contou com o dinheiro arrecadado em uma vaquinha para sanar dívidas que contraiu no período. Com a iniciativa, ainda foi possível trazer para o Brasil seu filho, menor de idade. Quintanilha, do Fórum Fronteiras Cruzadas, agora é uma das organizadoras de uma segunda vaquinha para que ela possa comprar alimentos e fazer exames médicos detalhados.
A rede Vidas Imigrantes Negras Importam, que reúne representantes de várias entidades, organiza atos pela liberdade de Falilatou na avenida Paulista, em São Paulo, nesta segunda (20), dia da Consciência Negra. A refugiada togolesa deve comparecer ao local.