Imaginemos que estamos em 6 de novembro de 2024, o dia seguinte às eleições presidenciais nos Estados Unidos.
Para entender a vitória apertada de Kamala Harris sobre Donald Trump, é preciso lembrar de Marie Kondo, a guru da organização japonesa famosa por seu minimalismo implacável, cuja solução para uma casa desordenada era remover qualquer objeto que não “despertasse alegria” de cara.
O progressismo que permeia o Partido Democrata hoje pode ser entendido em certa medida como uma visão de mundo desordenada e claustrofóbica. Em sua encarnação nos governos Trump e Joe Biden, ele não somente envolvia uma grande variedade de grupos de interesse, cada um com suas próprias demandas, como defendia que todas elas precisavam ser aceitas e satisfeitas em conjunto, que havia uma espécie de unidade filosófica ou mesmo mesmo doutrinária subjacente a ela, um manto indivisível que não podia ser fragmentado.
Tudo é interseccional, e não se pode escolher uma coisa em detrimento de outra: justiça climática implica justiça reprodutiva, que implica antirracismo; direitos trans são direitos das mulheres, que são direitos indígenas; se você apoia imigrantes, também deve apoiar os sindicatos de professores e vice-versa.
Essa sensibilidade desordenada não impediu o progressismo de se tornar a ideologia mais poderosa da sociedade americana.
Mesmo que as formas mais extremas de ativismo progressista estejam retrocedendo em parte, as ideias progressistas permeiam de tal modo as instituições culturais dos Estados Unidos que, se alguém visitasse em um mesmo dia uma sala de professores de uma universidade de elite, um departamento de recursos humanos de uma grande empresa, um evento em Hollywood ou uma reunião de pauta de uma revista, a sensação era de que este é um país com regime de partido único.
Mas para os líderes do Partido Democrata, a combinação de doutrina inflexível e poder cultural cria dores de cabeça políticas e vulnerabilidades eleitorais. A rigidez da ideologia de esquerda significa que, se você discordar de seus “testes de pureza”, rapidamente se sentirá um estranho, quando não um herege, forçado a escolher entre a difícil vida de um moderado ou o salto para a oposição.
Além disso, o domínio cultural progressista faz com que qualquer pessoa que se sinta desiludida com alguma instituição americana (como o sistema de saúde público, o ensino superior, a agência de vigilância sanitária ou a CIA) acabe se sentindo alienada da esquerda em geral. Isso cria uma variedade de grupos indecisos que podem ficar felizes em ver o poder da esquerda ser de alguma forma moderado ou reprimido.
Desde 2015, a notável resiliência de Trump se baseou na habilidade dele de se tornar uma personificação para esses variados descontentamentos —um símbolo de contestação e de rebeldia, o líder natural de um grupo de outsiders excluídos e decepcionados, além de algumas figuras políticas tradicionais tão desiludidas quanto eles.
Quando Trump estava em alta, no final de junho, sua coalizão de outsiders parecia estar ganhando novos integrantes rapidamente —homens jovens, imigrantes, empreendedores do Vale do Silício. Eles não tinham necessariamente abraçado uma agenda óbvia de direita, mas todos buscavam uma força contrária à ortodoxia democrata.
No papel, Kamala não parecia uma candidata capaz de conter essa perda de apoio. Ela fez sua carreira na Califórnia, um estado superliberal, e embora seu perfil talvez fosse o de uma “política de máquina” e não o de uma ativista radical, tinha um longo histórico de lealdade a grupos e causas da esquerda. Ela não tinha o passado de moderação que fez de Joe Biden uma figura apaziguadora em 2020.
Em julho, parecia que os democratas precisavam desesperadamente de um centrista hábil e não de uma liberal da Califórnia, e parecia que trocar Biden por Kamala talvez os salvasse de uma derrota esmagadora, mas ainda assim os levaria a uma derrota.
Mas acabou que havia uma alternativa ao centrismo explícito.
Kamala assumiu algumas posições moderadas, prometendo mais controle de fronteiras e propagandeando seu passado como promotora de Justiça. Mas principalmente, ela organizou a plataforma de campanha democrata à la Marie Kondo. Desse modo, reduziu a agenda desordenada a algumas promessas populares e simplesmente deixou todo o resto de fora, apresentando ao final uma espécie de minimalismo progressista.
Seu discurso na convenção do Partido Democrata incorporou esse estilo: foi curto e inespecífico sobre praticamente tudo, exceto restaurar o direito ao aborto, proteger a classe média e manter Trump fora da Casa Branca.
Para os republicanos, isso foi incrivelmente frustrante. Eles apontaram, corretamente, que Kamala com frequência apenas evitava os temas difíceis em vez de oferecer uma nova abordagem política. Reclamaram, com razão, que ela estava abandonando suas posições anteriores sem dar qualquer explicação.
Embora todos esses argumentos façam sentido, há um aspecto da campanha de Kamala que esses conservadores não entenderam. Eles sugeriram que todo o papo sobre alegria do Partido Democrata era só uma jogada psicológica, uma grande farsa.
Mas a verdade foi que o minimalismo da vice-presidente despertou um alívio sincero e genuíno entre muitos democratas. Não só por dar a eles uma chance real de vitória eleitoral, mas porque foi de fato emocionante não se sentir aprisionado pela doutrina progressista, fugir temporariamente das palavras de ordem que nunca despertaram esse entusiasmo todo fora do núcleo ativista-acadêmico do partido.
Quando ser democrata significa só ser a favor do direito ao aborto e contra Trump, militar pelo partido é muito mais tranquilo e, por que não, alegre do que quando se precisa olhar constantemente por cima do ombro para descobrir que regra antirracista é preciso seguir, que alternativa radical ao sistema de saúde se deve defender, que proposta ambiental ultraespecífica é necessário abraçar entusiasticamente.
Esse “relaxamento ideológico” foi o que a campanha de Kamala entregou ao seu partido, e muitos de seus apoiadores realmente a amaram por isso.
O desafio que esse minimalismo progressista representa para o trumpismo é considerável. Ele estava unido e crescia como força opositora, uma aliança de todo tipo de impulso antiprogressista e anti-Biden.
Mas sem ter uma agenda progressista contra a qual se organizar, e em um momento em que a corrida contra Kamala é definida apenas por algumas ideias populares, o foco passou cada vez mais para os pecados e limitações do próprio Trump e para as contradições internas de sua coalizão.
De uma hora para a outra, a ausência de uma agenda política conservadora coerente passou a importar, e o fato de que o caminho para a vitória republicana dependia tanto de eleitores antiwoke quanto de evangélicos antiaborto, tanto de pessoas curiosas em relação ao conservadorismo quanto de membros ressentidos da classe operária, tanto de empresários quanto de figuras como Robert F. Kennedy Jr., tanto de conservadores tradicionais quanto de moderados, virou um problema.
Se houvesse algo capaz de satisfazer todos esses grupos, Trump não seria o homem que descobriria isso. Até o dia da votação, seus apoiadores vão continuar reclamando que ele é indisciplinado demais —ou seja, ele mesmo demais— para passar uma mensagem consistente.
Mas o problema no fundo era que sua chapa precisava de uma alternativa afirmativa para derrotar o progressismo à la Marie Kondo de Kamala, e ele estava muito imerso em questões pessoais e em um oposicionismo reativo.
Ele precisava de um antagonista óbvio, uma ameaça unificadora para transformar sua aliança antiprogressista, no geral fraturada, em uma maioria. O minimalismo de Kamala recusou-se a dar a Trump o que ele precisava.