Uma terra banhada pelo mais puro ouro. A cidade do ouro, Eldorado. Durante séculos, exploradores europeus imaginavam que um dia encontrariam esse paraíso de riquezas. Buscaram-no em terras longínquas na África, na Ásia. Vislumbraram-na em algum lugar no Oceano Índico.
A partir da chegada da frota de Cristóvão Colombo (1451-1506) à América, em 1492, esses gananciosos olhares se voltaram para estas terras.
E foi este contexto que fez do explorador inglês Walter Raleigh (1552-1618) uma das figuras mais notáveis da era elisabetana —período em que a Inglaterra foi governada por Elizabeth 1ª (1533-1603). E trouxe fama —com base em mentiras, diga-se— à região banhada pelo rio Essequibo, território da Guiana que vem sendo disputado pela Venezuela.
Mas essa é uma história que precisa de três atos.
Primeiro, de onde vem essa ideia de Eldorado. Segundo, quem foi Walter Raleigh. E, terceiro, como ele se embrenhou, duas vezes, pelas até então desconhecidas —aos europeus— terras da atual Guiana, encontrou quase nada de metais preciosos e, mesmo assim, decidiu bancar um relato fantasioso de que havia, sim, achado o Eldorado.
Parte 1: Eldorado
“A ideia do Eldorado, por parte de vários exploradores e conquistadores europeus, remonta a muitas passagens bíblicas, desde a busca pelas minas do Rei Salomão até o encontro com uma ‘terra prometida'”, explica à BBC News Brasil o historiador Victor Missiato, pesquisador do grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Unesp (Universidade Estadual Paulista), e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré.
“Então, dentro de um contexto e de uma mentalidade ainda muito medieval, onde o novo e a experiência do fantástico estão muito ligados a interpretações de passagens bíblicas, vários desses homens que passaram por atribulações na Europa, sofrimentos, guerras, epidemias, interpretaram essa conquista da América como um espaço do merecimento, das atribuições dos presentes divinos”, acrescenta.
Foi essa mentalidade que motivou a crença em um local repleto de ouro e pedras preciosas, como uma dádiva.
“Somente conquistadores que atravessassem várias dificuldades chegariam ao seu destino final fantástico e misericordioso, como nas epopeias antigas de grandes aventuras”, completa ele.
Em território americano, esse imaginário europeu ainda foi alimentado pelo fato de que civilizações por aqui também utilizavam ouro e prata e, principalmente, porque havia também entre os povos originários relatos lendários que convergiam para a mesma ideia de uma terra dourada.
“[O Eldorado] é fruto de sincretismos da cultura medieval, que acreditava na existência de um paraíso, uma terra banhada a ouro mais ao sul, e mitos também presentes entre indígenas, de que haveria uma terra encantada cheia de ouro”, diz à BBC News Brasil o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor na FESPSP (Fundação Escola de Sociologia de São Paulo) e da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).
Ramirez lembra que o deslumbramento do europeu frente ao cenário encontrado na América contribuiu para alimentar esse mito.
“Supunha-se que seria por aqui, afinal de contas, contrastando com o cenário europeu de pestes, doenças, guerras, aqui havia indígenas nus, supostamente descendentes de Adão e Eva, e este cenário verdejante e abundante seria o próprio paraíso”, diz.
Na sua tese de doutorado —depois convertida em livro— “Visão do Paraíso”, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) situa a ideia do Eldorado muito mais no contexto da cosmovisão espanhola, quando da exploração da América.
Isso porque, segundo ele, os portugueses já chegaram a estas terras desencantados, depois de muito terem procurado por uma terra de ouro na África e na Ásia, sem sucesso.
“Vacinados, vieram com ordem da Coroa para não buscar o paraíso ou Eldorado, porque já estavam calejados com histórias míticas que não condiziam com a própria realidade”, conta Ramirez.
Então foram buscar o mais palpável —no caso, o dinheiro da exploração do pau-brasil e, em seguida, da cana-de-açúcar.
Os textos do próprio navegador Colombo também influenciaram essa mítica espanhola.
Em seu diário de viagem, em 13 de outubro de 1492, dia seguinte à chegada à América, ele escreveu que “aqui também nasce o ouro que [os indígenas] trazem pendurado no nariz”.
No dia 15, volta a abordar o tema, relatando a busca por ilhas em que há “esbanjamento de ouro” e citando adereços dourados utilizados pelos habitantes locais.
Buarque de Holanda conta que, na América espanhola, foram quase três séculos de buscas pelo Eldorado.
A localização idealizada também costumava variar, conforme a lenda, conforme o relato, conforme os indícios que tais desbravadores juravam acreditar.
“O mito se espalhou pela América espanhola sobretudo a partir de 1530”, pontua Ramirez.
“Em um primeiro momento, seria na [atual] Colômbia, depois na Venezuela, depois em algum ponto no meio da América.”
Não é difícil supor que as terras até então desconhecidas pelo europeu, na atual Guiana, fossem um alvo idealizado dessa localização central da tal cidade paradisíaca da riqueza.
“À imagem ou não do Dourado propriamente dito —o dos Omágua e de Manoa— e também do Dourado de Meta, isto é, dos Chibcha, foram repontando aqui e ali muitos outros reinos áureos ou argênteos, não menos lisonjeiros para a desordenada cobiça dos soldados”, escreve Buarque de Holanda, citando ainda uma “sumária relação” que inclui “o Dourado de Paititi, nas regiões de Mojos e Chiquitos; o Dourado dos Césares, na Patagônia, até o Estreito de Magalhães e, para o norte, na área de Chaco; o Dourado das Sete Cidades, no território do Novo México atual, e o de Quivira, ao oriente das grandes planuras da América do Norte”.
Parte 2: Walter Raleigh
Assim, o sonho de encontrar o Eldorado devia povoar a mente de um homem como Walter Raleigh. Caçula de cinco filhos de uma família de nobres rurais protestantes, ele nasceu em Devon, na Inglaterra.
Sua juventude é repleta de passagens incertas, mas há quem defenda que ele teria estudado direito —talvez sem ter concluído o curso.
De 1579 a 1580, ele participou dos esforços para suprimir as chamadas rebeliões de Desmond, uma revolta de senhores feudais irlandeses contra o domínio inglês na região.
A vitória da empreitada fez dele um grande proprietário de terras na região —calcula-se que ele tenha sido dono de 0,2% do território da Irlanda.
Aos poucos, Raleigh foi conquistando apreço da monarquia inglesa.
Em 1584, a rainha Elizabeth deu a ele uma carta real que o autorizava a governar, colonizar e explorar qualquer local conquistado, “terras, países, territórios remotos, pagãos de bárbaros, não possuídos de fato por qualquer príncipe cristão ou habitado por povo cristão”.
Em troca, deveria remeter à coroa 20% de todos os metais preciosos que por ventura encontrasse nesses lugares.
O germe do conquistador estava plantado em Raleigh.
Ele passou então a atuar como corsário e organizar expedições para a América, sobretudo na região mais ao norte. Entre 1584 e 1585, uma missão militarizada sob seu comando acabaria fundando, na Ilha de Roanoke —litoral do atual estado da Carolina do Norte, aquele que foi o primeiro assentamento de ingleses na América do Norte.
Atribui-se a Raleigh, com o aval da rainha, a abertura do caminho para a colonização inglesa na região, sobretudo onde hoje é o estado da Virginia.
Em 1594 chegaram até ele rumores que haveria uma cidade do ouro na América do Sul. Ele não teve dúvidas: organizou uma expedição e foi tirar essa história a limpo.
“Muitas regiões vinham sendo identificadas como Eldorado, por conta de diferentes tipos de relatos indígenas”, diz Missiato.
“Esses relatos também eram uma forma dos indígenas de resistir e dialogar com as ideias dos conquistadores.”
Cada missão organizada era sempre uma operação sigilosa.
“Cada grupo queria ter a exclusividade dessa conquista, por isso tantas foram as empreitadas, seja as com o apoio do estado, seja as aventuras mais ligadas aos piratas”, comenta o historiador.
“No caso específico do Raleigh, ele se enquadra dentro do mundo dos corsários, quando havia um patrocínio, um apoio velado ou oficial por parte do Estado”, analisa.
“A Inglaterra se especializou muito nisso: parte do investimento das aventuras era patrocinada e, em contrapartida, a coroa teria direito a uma boa parte das riquezas encontradas.”
Ramirez destaca o papel de articulador do explorador inglês.
“Ele convenceu a coroa inglesa de que haveria o Eldorado e, imbuído dessa mitologia baseada no deslumbramento dos espanhóis em busca do paraíso, entendeu que deveria buscar realizar esse intento”, diz o sociólogo.
Parte 3: as viagens à Guiana
Bom, é preciso situar a aventura de Raleigh em um pano de fundo histórico. Desde 1585 ocorria a chamada Guerra Anglo-Espanhola, um conflito político e religioso entre as duas coroas. Isso trazia implicações além-mar, com corsários afundando navios com bandeiras inimigas.
No meio disso tudo, Raleigh amargou um período complicado, porque havia se casado secretamente com uma das damas de companhia da rainha, engravidando-a.
Elizabeth 1ª, contrariada, mandou-o para a cadeia, onde ele ficou pouco tempo. Ele queria reconquistar o apreço da monarca e, ao mesmo tempo, colocar-se na batalha contra os espanhóis.
Lembrou-se dos relatos do Eldorado e tratou de vender a ideia para a rainha, localizando na atual Guiana “um império rico em ouro mais lucrativo que o Peru“, conforme teria definido. Raleigh parecia acreditar mesmo na história, que já o fascinava desde anos antes.
Na década de 1580, uma frota sob seu comando rendeu a embarcação onde estava o aventureiro espanhol Pedro Sarmiento de Gamboa (1532-1592). Feito prisioneiro, ele teria compartilhado relatos e mapas espanhóis com os ingleses.
Gamboa teria contado a Raleigh sobre outro espanhol que, em expedição pela região do Rio Orinoco, havia sido raptado por nativos que o levaram, de olhos vendados, para conhecer uma cidade onde tudo era de ouro. Como foi impedido de ver qualquer no trajeto, ele era incapaz de localizá-la.
Cruzando essas informações com os mapas de que dispunha, Raleigh imaginou que Eldorado fosse uma cidade indígena chamada Manoa, perto de um lago imenso chamado Parime, na região sul do Orinoco, próximo ao rio Essequibo. Essa tornou-se então uma ideia fixa para ele.
“Esse inglês estava, no fim das contas, imbuído das ideias que misturavam mitos indígenas e fortes resquícios medievais”, afirma Ramirez. “Mas convenceu a coroa inglesa a investir nesse empreendimento.”
Em 6 de fevereiro de 1595, saiu de Plymouth, na Inglaterra, a embarcação com Raleigh a bordo. A primeira parada, para abastecer-se de suprimentos, foi nos Açores. Em seguida, perto das Ilhas Canárias, os corsários enquadraram e saquearam um navio espanhol, o que rendeu aos ingleses uma boa quantidade de armas de fogo.
No dia seguinte, outra embarcação, holandesa, foi rendida e esvaziada pelos corsários —garantindo fartura na despensa.
A base para iniciar a expedição estava definida: seria a colônia espanhola de Trinidad. No dia 4 de abril, eles conquistaram um pequeno forte que havia em Puerto de España. Dali, partiram para San José de Oruña, o assentamento principal da colônia.
O governador de Oruña teria sido interrogado por Raleigh. Supostamente, ele conhecia Manoa e Eldorado, mas teria tentado desencorajar o inglês a seguir na missão.
A expedição rumou para a bacia do rio Orinoco. Eram cerca de cem homens, em duas embarcações, com provisões suficientes para cerca de um mês.
O grupo sofreu muito com as condições climáticas: o forte calor equatorial e as chuvas constantes. O desânimo era geral, principalmente depois que o indígena que havia sido contratado para guiá-los desapareceu.
Mas eles seguiram e só passaram a acreditar em um desfecho positivo quando chegaram ao vale do Orinoco e a floresta densa deu lugar à vegetação de savana. Agora era mais fácil dominar a natureza.
Houve alguns percalços, sobretudo pela ameaça constante de ataque de grupos espanhóis. Em pelo menos duas situações, houve confronto.
Alguns dias depois, a expedição de Raleigh adentrou em outra ramificação fluvial, o rio Caroni. Os ingleses encontraram pelo menos dois povos originários, os Warao e os Pemong. Mais uma vez ouviram dos nativos relatos indicando uma civilização rica que viveria em Manoa, o Eldorado.
Raleigh avistou um morro, o monte Roraima, e, segundo seus registros, observou pelo menos 12 cachoeiras, dizendo que uma era “mais alta do que qualquer torre de igreja” —há quem defenda que ele teria visto as cataratas Ángel, a cachoeira com maior queda ininterrupta do mundo, com 807 metros.
Mas já eram mais de 640 quilômetros para o interior e, com a iminência da estação das chuvas, Raleigh achou por bem dar ordens para o grupo retornar. Eles chegaram à Inglaterra em agosto.
A recepção não foi das melhores. Já um nome importante da política britânica, o conde de Salisbury, Robert Cecil (1563-1612) achou pífios os resultados diante do valor investido pela coroa. As amostras de rocha trazidas por ele foram submetidas à análise e consideradas de pouco valor.
Indignado com o descrédito, Raleigh decidiu escrever e publicar seu próprio relato da expedição, um livro chamado “A descoberta do grande, rico e belo Império da Guiana”, sobre a grande e dourada cidade de Manoa (que os espanhóis chamam de El Dorado).
O texto trazia informações factuais sobre a viagem, mas Raleigh forçou a mão, exagerando sobre as facilidades de encontrar pedras preciosas na região.
Mas, de certa forma, este acabaria sendo um legado de Raleigh. Em texto publicado pelo Departamento de História da Universidade de Washington, nos EUA, o historiador Benjamin Schmidt, professor da instituição, diz que o relato “é uma obra-prima da literatura de viagens” e tem o mérito de reunir “temas importantes” para a Renascença, como “o encontro europeu com o Novo Mundo”. “[…] O relato de Raleigh oferece uma visão de uma época de transformação mundial”, afirma.
No ano seguinte, o explorador inglês decidiu enviar seu parceiro Lawrence Kemys (1562-1618) para uma nova expedição. Ele se encarregaria de firmar alianças com nativos e coletar informações para mapear a região, principalmente às margens do rio Essequibo.
Kemys encontrou um lago que julgou ser o Parime —hoje sabe-se que o fantástico lago não passa de uma lenda.
Em 1603, no contexto da sucessão de Elizabeth 1ª, Raleigh foi preso, acusado de traição e conspiração. Saiu da cadeia apenas em 1616. Perdoado pela monarquia britânica, recebeu autorização para mais uma expedição à Guiana, em 1617.
Durante essa viagem, seu grupo atacou um destacamento espanhol no rio Orinoco, violando um tratado que vigorava entre Espanha e Inglaterra.
Pressionado pelos espanhóis, o rei Jaime 1º (1566-1625) condenou-o à morte por decapitação. A sentença foi cumprida no Old Palace Yard, no Palácio de Westminster, em 29 de outubro de 1618.
Este texto foi publicado originalmente aqui.