A era heroica da exploração antártica atingiu seu auge em dezembro de 1911, quando o norueguês Roald Amundsen superou Robert Falcon Scott na corrida ao polo Sul.
Terminou, possivelmente, às 8h20 de 20 de dezembro de 1928, quando o australiano George Hubert Wilkins decolou da Ilha Deception, ao lado da Península Antártica, em um monoplano de asa alta “elegante, brilhante e em forma de bala”, para explorar o último lugar desconhecido do mapa.
Com aquele voo, chegava de fato a era da máquina —da máquina voadora— da exploração antártica.
Quase um século depois, possivelmente ainda estamos nela. Existem cerca de 50 pistas na Antártida, e a Austrália quer construir uma nova pista de concreto.
O voo de Wilkins foi seguido de outros voos semelhantes, feitos por pioneiros da aviação como Richard Byrd, aviadores divididos por rivalidades, mas que eram tão corajosos quanto seus antecessores.
As expedições deles abriram o caminho para a Antártida que temos hoje, desmilitarizada, ambientalmente protegida e liderada pela ciência, mesmo que essa talvez não fosse a que eles queriam.
“Pioneiros como Wilkins eram aviadores extremamente corajosos”, diz Victoria Auld, piloto da British Antarctic Survey (BAS). “Temos GPS e rádio, mas eles faziam longos voos para o polo com apenas um sextante para estimar suas posições e sem equipamentos básicos de comunicação.”
Como em outros lugares do mundo, mesmo estando no começo da aviação antártica, as aeronaves mudaram radicalmente o que os exploradores eram capazes de alcançar.
“O avião foi o verdadeiro divisor de águas porque você pode cobrir muito terreno rapidamente”, diz Klaus Dodds, professor de geopolítica da Universidade de Londres Royal Holloway e autor de “The Antarctic: A Very Short Introduction” (A Antártida: Uma brevíssima introdução, em tradução livre).
Mas as aeronaves também deram aos exploradores uma perspectiva completamente nova sobre o continente antártico, que permitiu ver o quão vasto ele realmente era.
“Wilkins e Byrd foram as primeiras pessoas a sobrevoar sistematicamente a Antártida”, diz Adrian Howkins, professor de história ambiental da Universidade de Bristol.
“Quando você olha para os mapas que eles produziram, pode ver o quanto do continente eles puderam ver em um avião, em vez de em um navio ou andando pelo gelo. Mas dar sentido ao que eles viram não era tarefa fácil e alguns erros foram cometidos.”
A Antártida pode até já estar mapeada por satélites, mas isso não significa que seres humanos tenham estado em todos os lugares, ou que os mapas estejam sempre atualizados.
“Às vezes, as montanhas eram marcadas nos mapas básicos que tínhamos”, diz a exploradora polar Felicity Aston, ex-meteorologista da BAS (British Antarctic Survey, órgão responsável pelos interesses do Reino Unido na Antártida), escritora, líder de expedição e, em 2012, primeira mulher a esquiar sozinha no continente gelado.
“Às vezes elas não estavam, e de repente você estava sobrevoando uma cordilheira inteira quando, no mapa, havia algum texto no meio de uma grande área em branco, onde estava escrito ‘montanha vista aqui em 1967’.”
Auld agora pilota o bimotor de Havilland Twin Otter de asa alta. Trata-se de um dos pilares da “força aérea” da BAS devido a sua resistência, confiabilidade e capacidade de decolar e pousar em pistas curtas.
Normalmente, ela está “voando linhas de pesquisa” sobre um local específico para investigar questões de geofísica e atmosféricas, ou em viagens de uma semana para instrumentar locais no “campo profundo” para baixar dados, realizar reparos e configurar novos instrumentos.
“Alguns dos caras mais velhos diriam que não há mais voos reais hoje em dia”, diz Auld. “Mas não há muitos empregos, certamente para uma piloto do Reino Unido, onde você possa ir e pousar na neve em uma aeronave com esquis.”
Quando céu e terra se confundem
Um dos grandes perigos que pilotos enfrentam na Antártida é a desorientação devido à falta de contraste entre o céu e a terra.
Para prevenir esse risco, a BAS não envia aeronaves a um novo local, a menos que haja “luz do sol em campo” (céu azul limpo).
“Quando vamos a fundo em locais montanhoso, damos uma boa olhada no local de pouso a partir do alto, de muitos ângulos diferentes, para detectar fendas”, diz Auld.
“Supondo que não encontremos nenhuma, usamos uma técnica chamada esqui de trilha para colocar peso suficiente nos esquis para testar o quão áspera é a superfície, mas também para ver se estamos expondo alguma fenda que não conseguimos ver do ar. Se estivermos satisfeitos com o que encontrarmos, então entramos e pousamos.”
Na Antártida, vale a pena pensar nos riscos.
“Sempre temos em mente a opção de abortar o pouso e nos certificar de que não estamos nos expondo a uma situação da qual não se pode fugir por causa de terreno em ascensão à sua frente”, acrescenta ela.
Auld se vê conversando cada vez mais com pilotos de drones, trabalhando em como misturar as operações do Twin Otter com os Sistemas de Aeronaves Pilotadas Remotas (RPAS) que a BAS está desenvolvendo.
Os pioneiros
Em 1928, a aeronave em forma de bala que Wilkins e seu copiloto Carl Ben Eielson pilotaram era a embarcação de ponta.
O Lockheed Vega deles foi projetado por Jack Northrop, que mais tarde fundou a Northrop Corporation, famosa pelo bombardeiro furtivo B-2.
No início daquele ano, em outro Vega, os dois pilotos tornaram-se os primeiros a atravessar o Oceano Ártico do Alasca para Svalbard, na Noruega.
Do outro lado do mundo, os exploradores literalmente voaram por cima da península antártica. Em apenas 20 minutos, o Vega percorreu 65 km, uma distância que levaria meses para ser percorrida a pé.
Depois de quase 4 horas e meia, com metade do combustível gasto, Wilkins abriu uma escotilha, deixou cair uma proclamação (uma bandeira e um documento) reivindicando a terra para o rei George 5º da Grã-Bretanha e, relutando, deu meia-volta.
No voo de 10 horas —filmado por duas câmeras de cinema que estavam a bordo— o australiano e seu colega americano cruzaram pelo menos 1.600 km de território antártico até então não registrado.
Durante o voo, eles conseguiram ter uma visão de mais de 258.998 quilômetros quadrados da Antártida, segundo estimativas da época. Wilkins nomeou as baías, terras e montanhas que ele descobriu em homenagem a seus apoiadores: Hearst Land, Mobiloil Inlet e Lockheed Mountains.
“Pela primeira vez na história, novas terras estavam sendo descobertas pelo ar”, escreveu ele.
De seu voo, Wilkins erroneamente concluiu que a península antártica era composta por três ilhas e não uma extensão do continente.
Disputa entre nações
Mas o australiano logo ganhou companhia na Antártida.
Em janeiro de 1929, a “expedição de milhões de dólares” do explorador americano Richard Byrd chegou à Baía das Baleias, perto da base de Scott, para sua malfadada expedição.
Foi a maior já enviada para a Antártida, e com ela foram três aeronaves e os homens para construir uma base subterrânea para passar o inverno. Recebeu o nome de Little America, e três antenas de rádio marcaram seu ponto.
Uma grande porção da Antártida Ocidental recebeu o nome da esposa de Byrd, Marie Byrd Land.
O voo ártico de Wilkins tinha sido um triunfo, mas muitos duvidavam que Byrd tivesse voado para o Polo Norte dois anos antes, como ele dizia. Agora, o americano tinha que vencer seu rival no polo Sul, mas ele perdeu a coragem.
Ele temia que seu Trimotor fosse muito pesado, pouco confiável e sedento por combustível para realizar tal voo.
Os meses de inverno deram a Byrd um breve respiro, mas em novembro de 1929 Wilkins voltava para a Antártida, e Jack Northrop disse aos jornais que “veremos uma corrida entre Wilkins e Byrd”.
Byrd também sabia que uma expedição australiana liderada por Douglas Mawson estava a caminho para explorar a costa da Terra de Enderby, por via aérea, para reivindicá-la para a Grã-Bretanha. E uma expedição norueguesa dirigia-se para mais ou menos a mesma região, para fazer o mesmo.
Entre eles estava a exploradora Ingrid Christensen, que se tornou a primeira mulher a ver a Antártia, sobrevoá-la e talvez até a primeira a pisar no continente antártico.
Então, às 15h30 do Dia de Ação de Graças, 28 de novembro de 1929, Byrd decolou para o polo Sul e foi para o deserto polar.
O avião atravessou a Plataforma de Gelo Ross e, em seguida, trabalhou para subir a Geleira Liv até o Alto Planalto Polar e o polo, mas a geleira os colocou cara a cara com uma parede de gelo gigante que parecia ser pelo menos 500 metros mais alta do que a aeronave poderia voar.
Desesperadamente, eles jogaram seus suprimentos para fora do avião até que, no último minuto, próximo à parede de gelo, uma corrente de ar pegou-os e jogou-os por cima.
Dez horas depois, à 1h da manhã de 29 de novembro de 1929, Byrd chegou ao polo Sul e largou a bandeira dos EUA. Wilkins fez vários outros voos, mas nenhum chegou perto de rivalizar com a conquista de Byrd.
Eis que no dia de Natal uma tragédia aconteceu: outro aviador norueguês decolou em um voo curto, uma tempestade estourou e ele nunca mais foi visto.
A maior expedição
Em janeiro de 1946, o almirante Richard Byrd ordenou que o novo porta-aviões do mar das Filipinas virasse contra o vento e seis enormes aviões de carga Douglas Skytrain de longo alcance movidos a hélice foram lançados por foguetes para um voo de oito horas para a Baía das Baleias, na Plataforma de Gelo Ross, na Antártida.
Os 13 navios, 33 aeronaves e 4.700 homens da Operação Highjump da Marinha dos EUA tornaram essa a maior expedição já enviada à Antártida, o ápice da conquista do continente por via aérea e o nascimento de uma nova era de exploração motivada pela ciência.
Os objetivos da expedição massiva incluíram preparação naval para a guerra ártica; mapeamento do litoral da Antártida; afirmação da soberania territorial americana sobre cerca de 40% do continente e pesquisa científica.
A expedição culminaria em uma repetição do voo de Byrd em 1929 para o polo Sul. Ao final dela, ele deixou cair a bandeira das Nações Unidas sobre o polo.
Byrd e seus homens fizeram muitas novas descobertas. No entanto, sem marcadores de solo, muitas das fotografias tiradas foram inúteis e, em 1955, apenas cerca de um terço delas tinham sido usadas para mapeamento.
‘Guerras de mapeamento’
Para Dodds, a exploração “nunca é neutra”, e isso certamente foi verdade para Wilkins, Byrd e seus semelhantes.
Esses homens foram motivados de forma variada pelo desafio pessoal, descoberta, admiração, ciência e glória, mas também pelo imperialismo.
“Nas décadas de 1920, 1930 e 1940, havia guerras de mapeamento porque a posse da Antártida era contestada”, diz Dodds.
“E o que esses países estavam tentando fazer era desenhar e publicar o maior número de mapas da Antártida que pudessem, com o máximo de detalhes possível, para estabelecer a reivindicação a ela”.
As “guerras de mapeamento” levaram os aviadores da expedição alemã de 1939 a soltar de seus barcos voadores flechas de metal estampadas com a Suástica nazista para marcar a reivindicação à terra.
Não é necessário dizer que eles não foram particularmente eficazes, mas isso não impediu que a Alemanha reivindicasse um “vasto território antártico”.
Após ser derrotada na Segunda Guerra Mundial, o país teve que abrir mão de quaisquer reivindicações no continente. O que impulsionou essa captura de terra foi a caça de baleias e a necessidade de controlar as águas ao redor da Antártida.
Carvão, petróleo e, mais tarde, urânio eram os próximos da lista, mas ninguém realmente sabia o que estava debaixo do gelo. Em 1940 especulou-se que a poeira de carvão poderia ser usada para derreter o gelo e, após a guerra, bombas nucleares.
Uma nova era
No entanto, a Antártida não foi esculpida pelas grandes potências. Em vez disso, uma nova era de exploração científica teve início.
Em 1955-56, a Operação Deep Freeze viu a Marinha dos EUA voltar sua atenção para apoiar cientistas americanos na exploração científica da Antártida.
Em 31 de outubro de 1956, a Marinha americana fez o que muitos pensavam ser impossível e pousou um avião LC-47 Douglas Skytrain no polo Sul.
O ano seguinte trouxe um programa de colaboração científica sem precedentes no Ano Geofísico Internacional (IGY, na sigla em inglês) de 1957-58, que na Antártida envolveu cientistas de cerca de 70 nações.
Esse novo foco na ciência também trouxe mais mulheres para o continente.
Em 1968, aos 72 anos, a argentina Irene Bernasconi tornou-se uma das primeiras cientistas mulheres a trabalhar no local.
Ela seguiu os passos de Jackie Ronne, que em 1947 foi a primeira mulher a explorar a Antártida como membro de uma expedição e que, juntamente com Jennie Darlington, foi a primeira mulher a passar o inverno na Antártida.
Ronne retornaria um total de 15 vezes ao continente, inclusive em 1971, em um voo para o polo Sul patrocinado pela Marinha dos EUA.
De longe, a conquista mais importante a emergir dos esforços do IGY foi o Tratado da Antártida, que foi assinado em 1959 e juntou 12 nações em um compromisso por um continente desmilitarizado e pacífico com base no princípio da cooperação científica internacional. Hoje já são 46 nações.
“A aviação também ajudou a confirmar a natureza coberta de gelo da Antártida, o que possivelmente contribuiu para a vontade de se comprometer com o Tratado da Antártida, porque havia pouca perspectiva de ganho econômico imediato”, diz Howkins.
A ciência tornou-se a “moeda” do continente, e construir infraestrutura, como pistas de pouso, mantém ela funcionando, permitindo que as aeronaves continuem a chegar.
“A Antártida é movida pelo ar”, diz Felicity Aston. “O transporte é importante, mas é devido a todas aquelas primeiras expedições aeronáuticas das décadas de 1920 e 1930, que temos toda aquela logística aérea que é tão vital para os programas científicos, bem como para o turismo e a exploração na Antártida.”
Território ainda em disputa
“Aviadores como Richard Byrd foram extremamente influentes em disparar a imaginação geográfica do público [no mundo todo]”, diz Dodd.
O filme “With Byrd At The South Pole” (Com Byrd no polo Sul, em tradução livre) ganhou um Oscar por sua cinematografia. Seu livro “Alone” (Sozinho) é um dos clássicos da literatura polar. O filme sobre a Operação Salto Alto, “The Secret World” (O mundo secreto), ganhou um Oscar de melhor documentário.
No entanto, as tensões permanecem.
O Tratado da Antártida apenas congelou reivindicações territoriais em vez de resolvê-las, e muitos países, como Rússia e China, querem seu lugar no gelo. Além disso, o derretimento do manto de gelo ameaça desencadear novas disputas sobre os territórios, ao facilitar a exploração de riqueza mineral enterrada abaixo.
“Pesquisa para revelar a localização de recursos valiosos é proibida pelo tratado”, diz Felicity Aston. “Mas é altamente improvável que, com todos os levantamentos geológicos em andamento, cientistas ainda não tenham uma boa ideia de onde estão os recursos.”
E há um poderoso lobby trabalhando para permitir a mineração no continente.
Além disso, as forças aéreas de muitas nações ainda fazem sentir sua presença no continente por meio de operações para apoiar a pesquisa científica.
Mas voar na Antártida ainda é perigoso. Em 2019, um C-130 Hercules da Força Aérea Chilena caiu, perdendo 38 passageiros e tripulação após a aeronave quebrar durante o voo ou ao bater na água. A causa do acidente é desconhecida.
Dito isso, hoje é possível um cientista deixar o conforto de sua casa e ser enviado a campo num intervalo de apenas duas semanas, “estendendo significativamente as temporadas de trabalho das equipes científicas”, diz Rodney Arnold, chefe da unidade aérea do Serviço Antártico Britânico.
Isso permite que organizações como a dele atraiam um número ainda maior de cientistas para o continente.
Aeronaves Douglas Dakota-Skytrains ainda fazem grande parte do trabalho pesado, e remanufaturadas como a Basler BT-67. A demanda por essas aeronaves americanas para transporte de carga pesada está aumentando. Algumas, renomeados como Snow Eagle 601, podem até ser encontradas nas cores da China.
Agora, a chegada dos drones, e, se construída, a nova pista de concreto australiana podem levar a voos durante todo o ano. Isso pode significar que muito mais do continente congelado seja explorado pelo ar.
Este texto foi publicado originalmente aqui.