A Síria está passando por uma onda de violência não vista desde 2020, alertou a Comissão de Inquérito da ONU sobre a Síria em um relatório divulgado nesta segunda-feira.
Em várias linhas de frente, as partes envolvidas no conflito atacaram civis e infraestruturas de maneiras que podem equivaler a crimes de guerra, enquanto uma crise humanitária sem precedentes está mergulhando os sírios em um desespero cada vez maior.
Escalada nos combates
Segundo o presidente da Comissão, Paulo Sérgio Pinheiro, desde outubro, a Síria vem registrando a maior escalada de combates em quatro anos. Para ele, com a região em tumulto, é imperativo um esforço internacional determinado para conter os combates em solo sírio. “A Síria também precisa desesperadamente de um cessar-fogo”, disse.
Paulo Pinheiro adiciona que o povo sírio não pode suportar mais nenhuma intensificação dessa “guerra arrasadora e prolongada”. Ele afirma que mais de 90% da população vive na pobreza, a economia está em crise com sanções mais rígidas e o aumento da ilegalidade alimenta práticas predatórias e extorsão por parte das forças armadas e milícias.
Novos desenvolvimentos
A escalada dos combates na Síria começou em 5 de outubro, quando explosões consecutivas durante uma cerimônia de formatura em uma academia militar na cidade de Homs, controlada pelo governo, mataram pelo menos 63 pessoas, incluindo 37 civis, e feriram muitos.
O governo sírio e as forças russas responderam com bombardeios que atingiram pelo menos 2,3 mil locais em áreas controladas pela oposição em apenas três semanas, matando e ferindo centenas de civis. Os ataques, que podem ser considerados crimes de guerra, atingiram hospitais, escolas, mercados e campos para pessoas deslocadas internamente.
Segundo a comissária Hanny Megally, as forças do governo sírio usaram novamente munições de fragmentação em áreas densamente povoadas, dando continuidade a padrões devastadores e ilegais, já documentamos no passado. Ela adiciona que os ataques de outubro resultaram na fuga de cerca de 120 mil pessoas, muitas delas já deslocadas várias vezes, inclusive pelos terremotos de fevereiro do ano passado.
Assim, ela avalia que não deve ser uma “surpresa” que o número de sírios que buscaram asilo na Europa em outubro passado tenha atingido o nível mais alto em sete anos. A comissária lembra que a Síria continua sendo a maior crise de deslocamento do mundo, com mais de 13 milhões de sírios incapazes de voltar para suas casas.
Oriente Médio
Desde o início da violência em Gaza, as tensões aumentaram entre parte dos seis exércitos estrangeiros ativos na Síria, principalmente Israel, Irã e EUA. A situação aumentou as preocupações de um conflito mais amplo.
Segundo informações, Israel atingiu pelo menos 35 vezes supostas instalações e forças ligadas ao Irã na Síria e atacou os aeroportos de Aleppo e Damasco, interrompendo temporariamente os serviços aéreos humanitários vitais da ONU.
As milícias pró-iranianas teriam atacado as bases dos EUA no nordeste da Síria mais de 100 vezes, e os EUA responderam com ataques aéreos contra as milícias pró-iranianas no leste da Síria.
Enquanto isso, no nordeste da Síria, os militares turcos aceleraram as operações contra as Forças Democráticas Sírias lideradas pelos curdos em retaliação a um ataque reivindicado pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão em Ancara em outubro.
Padrão de ataques
Os ataques aéreos turcos contra usinas de energia privaram quase um milhão de pessoas de água e eletricidade durante semanas, violando o direito humanitário internacional. Civis também foram mortos em ataques aéreos direcionados que se encaixam em um padrão de ataques de drones turcos. Esses atos podem ser considerados crimes de guerra.
A situação é agravada pela fragmentação das alianças militares e lutas internas que resultaram em vários ataques ilegais que causaram mortes de civis. A violência é alimentada por queixas de longa data de que a autoadministração curda, com pouco dinheiro, não está conseguindo fornecer serviços essenciais para garantir os direitos básicos.
O grupo Estado Islâmico do Iraque e do Levante, também conhecido como Da’esh, também intensificou suas operações na região central da Síria, não apenas contra alvos militares, mas também contra civis em áreas urbanas, em ataques que provavelmente constituem crimes de guerra.
O governo sírio continuou a desaparecer, torturar e maltratar seus detentos, e a Comissão documentou ainda mais mortes sob custódia, inclusive na prisão de Sednaya.
Segundo o relatório, quatro meses depois que a Corte Internacional de Justiça ordenou que o governo evitasse a tortura e a destruição de provas, as autoridades sírias ainda obstruem e lucram com os esforços das famílias para descobrir o paradeiro e o destino de seus entes queridos detidos, praticando extorsão.
Efeito nas crianças
Cerca de 30 mil crianças permanecem detidas em campos de internamento, prisões e centros de reabilitação no nordeste da Síria, mesmo cinco anos após a derrota territorial do Estado Islâmico, alertou a Comissária Lynn Welchman.
Ela denunciou que essas crianças, que já foram vítimas do domínio do Da’esh, continuam a sofrer violações e abusos dos direitos humanos. A Comissão concluiu que as condições nos campos de Al Hawl e Al Rawj representam tratamento cruel e desumano.
Welchman pediu aos Estados que permitam o retorno imediato dessas crianças e garantam sua reintegração à sociedade, enfatizando que nenhuma criança deve ser punida pelas ações de seus pais. Ela instou a comunidade internacional a acabar com a inércia e responsabilizar os culpados por esses crimes.
Ela afirma que os sírios ainda enfrentam dificuldades sem precedentes. 16,7 milhões dentro do país agora precisam de assistência humanitária, o maior número de pessoas necessitadas desde o início da crise.
O déficit nos fundos dos doadores forçou a ONU a suspender a ajuda alimentar regular na Síria, colocando milhões de pessoas em situação de fome. Para a Comissão, as entregas de ajuda são reféns de decisões arbitrárias do governo sírio e prejudicadas por sanções.
A Comissão apresentará seu último relatório de mandato ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em 18 de março.