A Justiça alemã começa a julgar nesta terça-feira (21) nove acusados de liderarem uma rede de extrema direita suspeita de planejar tomar o poder por meio de um golpe de Estado.
O grupo, adepto de teorias conspiratórias e que não reconhecia a legitimidade do Estado alemão, foi desbaratado pela polícia em dezembro de 2022 por suspeita de planejar atos terroristas para criar um clima de caos propício para uma tomada violenta do poder.
O julgamento desta terça-feira, que ocorre em Frankfurt, envolve nove réus, entre eles um aristocrata, uma juíza, três ex-militares, um ex-policial, uma coach, uma cidadã russa e um consultor de finanças.
Esse é o segundo de três julgamentos que envolvem membros da rede. O primeiro, que inclui outros nove membros da chamada “ala militar” do grupo, teve início em abril em Stuttgart.
O terceiro julgamento, que vai envolver oito membros menos destacados da rede, está marcado para junho, em Munique. No total, 26 pessoas enfrentam acusações de formação de organização terrorista e planejamento de uma ação de alta traição.
Por causa da complexidade dos processos (espera-se que acusados em um julgamento testemunhem em outros, por exemplo), todos os procedimentos judiciais só devem ser concluídos em 2025.
Os nove membros do núcleo de liderança
O julgamento desta terça-feira desperta especial atenção na Alemanha por envolver o acusado que ganhou mais notoriedade após o desbaratamento da rede: Heinrich 13º, “príncipe” de Reuss, descendente de uma linhagem aristocrata do estado da Turíngia e que atuava como empresário do ramo imobiliário. Apontado como um dos principais líderes da conspiração, Reuss também foi acusado de tentar se reunir sem sucesso com representantes do governo russo para obter apoio ao golpe. Segundo os promotores, caso o golpe fosse bem-sucedido, Heinrich 13º assumiria a liderança do Estado alemão.
Outra acusada de integrar o núcleo de liderança do grupo é Birgit Malsack-Winkemann, juíza e ex-deputada do partido ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD), que exerceu mandato no Bundestag de 2017 a 2021 e teria planejado franquear aos conspiradores acesso a edifícios parlamentares. Ela foi suspensa de suas funções na Justiça de Berlim após a operação policial de 2022.
Os réus do julgamento de Frankfurt ainda incluem Rüdiger von Pescatore, um ex-militar. Entre 1993 e 1996, Pescatore foi comandante de um batalhão de paraquedistas. Ele teria sido expulso das Forças Armadas alemãs devido à venda ilegal de armas dos estoques do antigo exército da Alemanha Oriental. Rüdiger também costumava passar parte do seu tempo no Brasil. Há empresas registradas em seu nome em Santa Catarina e ele atuou como representante comercial de companhias de energia no Brasil.
Outros dois ex-militares também foram acusados de integrar a liderança do grupo: Maximilian Eder, um ex-coronel da Bundeswehr (Forças Armadas da Alemanha), e Peter Wörner, ex-soldado e que atuava como instrutor de sobrevivência na selva quando foi detido. Pescatore, Eder e Wörner integraram em diferentes momentos o Comando de Forças Especiais (KSK, na sigla em alemão), uma tropa de elite das Forças Armadas alemãs, que nos últimos anos foi envolvida em uma série de escândalos após a revelação de que membros da unidade tinham ligações com a extrema direita.
Segundo o Ministério Público, o restante da liderança era composta pelo ex-investigador de polícia Michael Fritsch, que atuava em Hannover e que foi dispensado da corporação por suspeita de extremismo no início de 2022; Johanna Findeisen-Juskowiak, uma coach e ativista antivacinas; Hans-Joachim H., um consultor financeiro que teria doado 140 mil euros para o grupo; e a cidadã russa Vitalia B., apontada pela imprensa alemã como parceira do “príncipe” Reuss e que também teria tentado entrar em contato com Moscou em busca de apoio para o golpe.
O perfil dos réus revelou que a rede se entrelaçava com outros grupos e movimentos de direita. O ex-policial Fritsch e a coach Findeisen-Juskowiak, por exemplo, já foram candidatos pelo partido Die Basis, formado durante a pandemia na esteira dos protestos contra as medidas restritivas impostas pelo governo alemão para conter o coronavírus. Findeisen-Juskowiak, assim como a juíza Malsack-Winkemann, também já foi filiada à AfD. Vários participaram de protestos durante a pandemia.
Ideologia e planos do grupo
Em 7 de dezembro de 2022, 3.000 policiais foram mobilizados na Alemanha em uma das maiores operações antiterrorismo da história moderna do país europeu.
Em poucas horas, os alvos foram revelados para a imprensa: 25 pessoas foram presas por suspeita de filiação a uma organização terrorista e por suspeita de planejar um golpe. Mais três pessoas acabariam presas nos meses seguintes.
Os presos não eram extremistas religiosos ou estrangeiros, em contraste com outras grandes operações policiais anteriores, mas quase todos alemães, vários já idosos e com curso superior. Entre eles estavam aristocratas, dois ex-coronéis do Exército, um ex-investigador de polícia, uma médica, um tenor, um chef de cozinha, uma astróloga, um instrutor de sobrevivência na selva e até uma juíza e ex-deputada. As autoridades também apreenderam mais de 300 armas de fogo e mais de 150 mil munições.
Todos são acusados oficialmente de formação de organização terrorista e planejamento de uma ação de alta traição. Os presos foram acusados de serem membros de uma célula de extrema direita chamada “União Patriótica”, com laços estreitos com o movimento Reichsbürger (“Cidadãos do Império Alemão”), que rejeita a moderna democracia alemã.
Segundo as autoridades, os membros do grupo acreditavam em um “conglomerado de teorias da conspiração”, entre elas a crença de que a Alemanha moderna seria uma construção ilegítima governada por membros de um chamado Deep State (Estado profundo).
De acordo com o Ministério Público Federal alemão, a “União Patriótica” planejava realizar um ataque ao Parlamento da Alemanha (Bundestag)em Berlim para provocar caos no país e criar condições para uma tomada violenta do poder. Como preparação, o grupo aparentemente organizou exercícios de tiro e chegou a espionar o interior do Bundestag. “Desde agosto de 2021, o pequeno grupo preparava, com um braço armado, a invasão do Bundestag em Berlim, com o objetivo de prender os deputados e derrubar o sistema”, apontou a denúncia.
As autoridades afirmam ainda que o grupo extremista também teria tentado recrutar soldados e policiais e elaborado listas de inimigos, além de tentar formar centenas de células armadas em todo o país.
Pelo plano dos golpistas, a ofensiva seria colocada em marcha num chamado “Dia X” e, caso fosse bem-sucedida, resultaria na nomeação do seu principal líder, um aristocrata chamado Heinrich 13º Reuss, que ostenta o título de “príncipe”, como novo chefe de Estado alemão. Os conspiradores então pretendiam negociar um “novo tratado de paz” com as antigas potências aliadas da Segunda Guerra Mundial: EUA, França, Reino Unido e principalmente com a Rússia.
Segundo as investigações, vários membros da liderança do grupo também são adeptos de teorias conspiratórias do movimento QAnon, que acredita que as principais instituições de governo do mundo são dominadas por uma elite de pedófilos satanistas. Outros membros eram ligados a movimentos antivacinas e participaram de protestos contra restrições governamentais durante a pandemia. Em escutas telefônicas, membros do grupo também foram gravados afirmando que o “Estado sionista” e “judeu” da Alemanha iria desaparecer em breve e que homossexuais seriam “finalmente destruídos”.
O que é o movimento Reichsbürger?
Os acusados que começam a ser julgados foram apontados como associados ao Reichsbürger, que se traduz como “Cidadãos do Império Alemão”. O movimento, que ganhou notoriedade os últimos anos, nega a legitimidade do moderno Estado da Alemanha. Os adeptos acreditam que o Estado atual não passa de uma construção administrativa artificial e que a Alemanha ainda seria ocupada pelas potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial. Para eles, as fronteiras de 1937 do Império Alemão ainda existem.
Os Reichsbürger também não aceitam a legalidade das autoridades governamentais da Alemanha. Vários se recusam a pagar impostos e declararam seus próprios pequenos “territórios nacionais”, que batizam com nomes como “Segundo Império Alemão”, “Estado Livre da Prússia” ou “Principado da Germânia”. O ex-policial Fritsch, um dos réus do julgamento desta terça-feira, por exemplo, chegou a indicar “Prússia” (estado alemão dissolvido em 1945) como local de nascimento quando solicitou um novo passaporte em 2022, segundo a imprensa alemão.
Outro traço em comum dos seguidores do movimento Reichsbürger é a rejeição da democracia, tendências monarquistas, xenofobia e antissemitismo.
Os membros desses grupos costumam imprimir seus próprios passaportes e carteiras de motorista com antigos símbolos do Império Alemão (1871-1918).
As autoridades de segurança estimam que existam 20.000 Reichsbürger na Alemanha, dos quais cerca de 2.300 são propensos a cometer atos de violência. Em um caso notório da Alemanha, em abril de 2022, quatro seguidores do movimento foram acusados de arquitetar um plano para tentar sequestrar o ministro da Saúde da Alemanha, o social-democrata Karl Lauterbach, por causa de medidas impostas pelo governo contra a pandemia. Armas e munições foram apreendidas na ocasião. O movimento também costuma se mesclar com adeptos de teorias conspiratórias, como o culto QAnon e o meio antivacinas.