Na madrugada de 11 de setembro de 1973, dois agentes da CIA fizeram plantão, em Santiago do Chile, nos escritórios locais do serviço americano de inteligência. Eles esperavam pelo golpe de Estado que, conforme estavam informados, derrubaria naquela manhã o presidente Salvador Allende.
A ditadura do general Augusto Pinochet duraria 19 anos.
Ao contrário da versão corrente na época, os Estados Unidos não comandaram diretamente o golpe —por mais que tenham criado todas as condições políticas para que ocorresse. É o que diz um dos agentes que participou daquela tocaia, Jack Devine.
Segundo ele, a agência de inteligência americana já havia atuado para impedir que Allende tomasse posse, em 1970. A iniciativa tinha sido estimulada pelo então presidente, Richard Nixon, mas fracassou. Em 1973, assim, a CIA se resguardou para não correr o risco de um novo malogro.
O órgão estava informado da conspiração na qual militares mais velhos temiam que os oficiais mais jovens saíssem à frente e atrapalhassem seus planos de entrar para a história por supostamente barrarem o caminho ao comunismo.
São informações publicadas no último número da revista americana de política internacional Foreign Affairs, em texto assinado pelo próprio Jack Devine. Não são revelações inéditas.
Além de documentos que tiveram sigilo derrubado e estão ao alcance dos historiadores, o ex-espião já havia publicado o texto em junho de 2014 na mesma revista. Ela o retomou agora, como o faz com temas importantes nas edições de verão do hemisfério Norte.
Devine relata, por exemplo, que a ditadura chilena, em suas quatro primeiras semanas, além da destituição de um presidente de esquerda democraticamente eleito, matou 1.600 civis. Culpava-os pelo plano de uma suposta ruptura constitucional que, a exemplo de Cuba, alinhasse o Chile aos interesses comunistas da União Soviética.
Foram muitas as iniciativas da CIA para desestabilizar um governo que, ao aderir às nacionalizações e ao controle do livre mercado, tornou-se involuntariamente uma linha auxiliar de seus inimigos americanos.
A agência esteve por trás da greve dos caminhoneiros que desabasteceu o país a partir de outubro de 1972, por exemplo. Foi uma bola de neve que desencadeou dezenas de outras greves. Os americanos também se esforçaram para impedir que uma censura à imprensa os impedisse de instrumentalizar a opinião pública.
A propósito, o ex-agente diz que a embaixada americana deu em dois anos US$ 2 milhões ao jornal El Mercurio, o mais tradicional da imprensa chilena, que defendia os interesses do mercado e fazia pesada oposição a Allende.
Em represália, não mais recebia publicidade oficial. Se o El Mercurio fechasse, os EUA perderiam um canal importante de difusão do liberalismo.
Apesar dos dólares que o jornal recebeu, a CIA não dava palpites em sua linha editorial. O que havia era uma coincidência de interesses entre a agressividade impressa contra Allende e as posições do governo americano.
Com um certo orgulho, Jack Devine narra sua cumplicidade com a mais eficiente iniciativa da classe média chilena contra o governo. O ex-agente disse ter sido procurado por uma mulher de certa idade com a proposta de levar as donas de casa às ruas, em protesto contra a carestia e a falta de alimentos básicos nos supermercados.
Ele deu à interlocutora “algumas centenas de dólares” para que ela comprasse panelas. Os itens foram distribuídos a outras donas de casa para que todas saíssem às ruas com talheres, que funcionavam como baquetas. Foi assim que surgiram os panelaços.
Devine ainda relata suas relações com os informantes no texto. Estes eram empresários que também conspiravam contra o governo. Um deles adiantou que o golpe eclodiria às 7h do 11 de setembro. Ocorreu 60 minutos mais tarde, por meio de manifesto lido em emissora de rádio. Também falou que a ação partiria da Marinha. De fato, o golpe nasceu naquela manhã numa base naval de Valparaíso.
O ex-agente conta que um de seus informantes foi um dirigente, que ele não identifica, do Partido Comunista Chileno. Ao conhecê-lo, em um almoço na casa de um empresário, acertou com ele uma colaboração mensal de US$ 1 mil, em valores da época.
Nos meses que precederam a ditadura, uma parcela da CIA e da embaixada americana em Santiago acreditava que nenhum golpe de Estado partiria das Forças Armadas em razão de sua fidelidade democrática à Constituição.
Boa parte dos contatos com militares se dava para troca de ideias, sem a insinuação de que eles chegariam ao poder. O número um da agência no Chile, chefe de Devine, narra uma experiência curiosa. Ele contou ter almoçado com Pinochet, então ministro do Exército, e comentou que daquele oficial jamais sairia coisa que se preste. “Ele é muito limitado.”