Chinês é vítima de tráfico humano para dar golpes online – 27/12/2023 – Mundo – EERBONUS
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Chinês é vítima de tráfico humano para dar golpes online – 27/12/2023 – Mundo

Haviam prometido a ele um salário generoso. Mais equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Uma chance de viver na vibrante metrópole de Bancoc. Sua fluência em inglês seria usada em serviços de tradução em uma empresa de comércio eletrônico, disse o recrutador.

Mais do que qualquer outra coisa, Neo Lu, um chinês de 28 anos, acreditava que o trabalho seria o novo começo de que ele precisava para economizar dinheiro e migrar para o Ocidente. Então, em junho do ano passado, ele se despediu e voou para a Tailândia.

Mas quando chegou, sua cabeça girava por causa do sol escaldante —e pela sensação de que algo estava muito errado. Em vez de um prédio de escritórios em uma cidade, Lu havia sido abandonado em algo que parecia um acampamento de trabalho construído de forma improvisada em uma área de selva e campos lamacentos.

Na verdade, não havia trabalho de tradução nem uma empresa de comércio eletrônico. Tudo isso fazia parte de um golpe, a começar pela postagem em um fórum de empregos chinês, aperfeiçoado por traficantes de pessoas para fazer com que trabalhadores como ele viajassem para a Tailândia.

Os traficantes levaram Lu pelo rio Moei, um curso de água na fronteira da Tailândia, e o levaram, sem seu conhecimento, para um canto remoto de Mianmar. Lá, os traficantes o entregaram a uma gangue chinesa que havia pago por ele.

Lu havia sido sequestrado e vendido para uma empresa criminosa, longe de tudo que conhecia.

Foi assim que ele se tornou um dos milhares de pessoas que foram traficadas por gangues e presas no que um grupo de pesquisa chamou de “câncer criminoso” de exploração, violência e fraude que se enraizou nos países mais pobres do Sudeste Asiático.

Lu, que usa o apelido de Neo em referência ao personagem dos filmes “Matrix“, falou com o jornal americano The New York Times sob a condição de que seu nome completo não fosse usado, por medo de retaliação dos criminosos. O Times verificou os detalhes da viagem, do cativeiro e do resgate entrevistando seus pais e dois amigos, além de revisar mensagens de texto, cópias de documentos de viagem e cartas emitidas pelas autoridades chinesas.

Seu relato se alinha com o de muitos outros que foram resgatados de tais acampamentos. Juntos, sua experiência e o material que ele conseguiu contrabandear são uma rara janela para o funcionamento interno e as táticas de um submundo que está operando em uma escala impressionante.

A partir de bases no Camboja, Laos e Mianmar, as gangues forçam seus cativos a realizar golpes online que se aproveitam de pessoas vulneráveis ao redor do mundo.

Normalmente, essas fraudes envolvem o uso de identidades falsas para atrair pessoas para relacionamentos românticos fictícios e, em seguida, fazê-las entregar grandes quantias de dinheiro em esquemas de criptomoedas falsas. Esse golpe é conhecido como “abate de porco”, pelo lento processo de ganhar a confiança de suas vítimas, o que pode levar semanas —engordando o porco, por assim dizer— antes de atacar.

Muitas das pessoas que foram sequestradas e forçadas a trabalhar para gangues de golpes são chinesas, porque os grupos inicialmente se concentraram em roubar pessoas na China. Mas os alvos das gangues se expandiram internacionalmente.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o FBI relatou que, em 2022, os americanos perderam mais de US$ 2 bilhões (R$ 9,7 bilhões) para o “abate de porco” e outros golpes de investimento. Cada vez mais, pessoas da Índia, das Filipinas e de outros países são traficadas para trabalhar para os grupos criminosos, levando a Interpol a declarar a tendência uma ameaça global à segurança.

Lu foi colocado para trabalhar como contador e, ao longo dos meses, rastreou milhões de dólares em renda ilícita e gerenciou despesas diárias. Enquanto ainda estava no acampamento, entrou em contato com o Times e enviou centenas de páginas de registros financeiros, fotos e vídeos do local, esperando expor a operação em algum momento.

Ele também enviou a captura de tela de um mapa que dava sua localização aproximada em Mianmar. O Times analisou imagens de satélite da área e geolocalizou as fotografias que Lu tirou no local, em um complexo conhecido como Dongmei Zone.

Myawaddy, cidade no sudeste de Mianmar onde fica a Dongmei Zone, oferece a base perfeita para grupos de golpes como aquele que havia sequestrado Lu. Com um governo frágil, criminosos governam com impunidade virtual e apoiados por grupos armados étnicos locais. Essas condições tornaram a área um ímã para gangues criminosas chinesas.

Uma vez que pessoas como Lu são levadas para Mianmar, elas são isoladas de suas famílias e amigos em uma região em grande parte inacessível a estrangeiros e mídia e longe do alcance da polícia.

O chefe da organização era um homem chinês de meia-idade, de cabelos grisalhos, a quem todos chamavam de Xi Ge, em chinês, o que se traduz como Irmão Alegria —ninguém no acampamento usava seus nomes reais.

Lu disse que Xi Ge alugou o espaço do complexo Dongmei e comandou uma operação com cerca de 70 pessoas, a maioria das quais cidadãos chineses que também estavam presos em Myawaddy. Lu foi informado posteriormente que Xi Ge havia pago US$ 30 mil (R$ 145 mil) por ele a traficantes de pessoas.

No local, os sequestrados trabalhavam sentados em um escritório aberto, sob a vigilância dos supervisores, e usavam centenas de celulares para criar perfis autênticos no WeChat, um popular aplicativo chinês. Esses perfis eram alimentados com dados, incluindo contas roubadas, números de celular, fotos e vídeos, que eram frequentemente comprados em massa pela internet.

Durante a primeira semana, Lu usou um telefone de trabalho para entrar em contato com um amigo no app de mensagens Telegram. No dia seguinte, porém, os gerentes o confrontaram, ameaçando espancá-lo ou vendê-lo para outro complexo em Myawaddy, onde se dizia que órgãos dos trabalhadores traficados eram retirados.

Lu desmoronou e implorou para ser libertado. “Eu não consigo fazer isso. Não sou adequado. Por favor, me deixem ir”, disse ele a seus sequestradores. Não funcionou.

Por fim, Xi Ge apresentou a Lu três opções: pagar um resgate de US$ 30 mil, trabalhar como golpista como todos os outros ou usar suas habilidades e ajudar com a contabilidade. Após seis meses, disse ele, a gangue consideraria libertá-lo.

Lu escolheu a opção de contabilidade e, após quase seis meses, ganhou a confiança de seus captores, que permitiram que ele usasse seu celular pessoal durante alguns minutos por dia.

Então, ele entrou em contato com sua família e amigos, contou que havia sido sequestrado, tirou fotos do complexo e filmou vídeos curtos dentro do escritório principal do grupo. Lu também desenhou um organograma, escreveu um glossário de terminologia da indústria, enviou tudo para uma conta de email criptografada e excluiu os arquivos de seus dispositivos de trabalho.

Em seguida, ele enviou o material para o Times, juntamente com registros financeiros de julho a novembro e uma lista com os nomes das vítimas de golpes.

Em 3 de janeiro, Lu pediu a Xi Ge para cumprir sua promessa de libertá-lo, o que não ocorreu, Em vez disso, ele foi levado para um dormitório reservado para a punição de trabalhadores desobedientes. Lá, ele foi algemado a uma cama beliche e era liberado apenas para refeições e pausas para o banheiro. Um guarda o vigiava o tempo todo e seus dispositivos eletrônicos foram confiscados. Ele então contou a seus captores que havia entrado em contato com a imprensa e com amigos.

“Tentei fazê-los entender que eu os havia encurralado”, relatou. “Eles não podiam mais confiar em mim ou me revender para outra organização. Eu era uma bomba-relógio.”

Foi quando a tortura começou.

Em 14 de janeiro, a mais de 3.000 quilômetros de distância, na cidade chinesa de Taizhou, os telefones dos pais de Lu tocaram. A gangue havia enviado dois vídeos. Em um deles, ele se contorcia no chão, uivando de agonia. Para seus pais, era demais para suportar.

“Meu marido não me deixou assistir, mas ele assistiu”, disse a mãe de Lu, Peng, que falou sob a condição de que seu primeiro nome não fosse usado. “Meu coração não aguentou.”

A gangue exigiu um resgate de 500 mil yuan chineses, ou cerca de R$ 338,5 mil. Para os pais de Lu, que tinham um pequeno negócio de venda de banners e letreiros de LED, essa não era uma quantia pequena. Eles denunciaram o sequestro à polícia e buscaram ajuda nas embaixadas chinesas e associações comerciais. Todas as manhãs, eles iam à praia rezar pelo retorno seguro de seu filho.

Então, a polícia em sua província natal de Zhejiang os apresentou a um homem que disseram poder ajudar. Ele era conhecido pelo apelido de “Dragão” e dizia ter resgatado com sucesso mais de 200 cidadãos chineses do Sudeste Asiático.

Em 21 de janeiro, uma semana depois que os vídeos de resgate haviam sido enviados, o Dragão disse aos pais de Lu que um amigo dele, um empresário chinês com conexões com a milícia armada local, havia feito uma viagem a Dongmei naquele dia, confirmado que Lu estava lá e dito que poderia fazer o resgate.

O empresário voltou a Dongmei em 23 de janeiro, desta vez acompanhado por um general e dezenas de soldados armados das Forças de Guarda de Fronteira, um grupo armado local alinhado à junta que governa Mianmar. Eles pediram por Lu.

Assim, ele foi libertado. Em questão de dias, Lu estava de volta à China —seu voo pousou em Xangai em 2 de fevereiro.

Nos últimos meses, as autoridades chinesas têm trabalhado com autoridades do Sudeste Asiático para prender e deportar para a China milhares de pessoas acusadas de trabalhar em grupos de golpes, mas especialistas acreditam que muitas organizações simplesmente transferiram suas operações.

Além de ter falado com a mídia chinesa, Lu ventilou a ideia de fazer um filme e planeja escrever um livro de memórias. “Essas gangues chinesas estão espalhando uma forma de escravidão moderna”, disse ele. “Quero que o mundo inteiro saiba.”

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