Começaram nesta semana as Duas Sessões, o principal evento legislativo anual da China. Ao longo de vários dias, parlamentares e especialistas de todo país se reúnem em Pequim para aprovar leis e discutir temas estratégicos em uma agenda milimetricamente orquestrada.
O principal acontecimento costuma ser a leitura do relatório de trabalho do premiê e a definição das metas de crescimento para o ano —definidas em 2024 para em torno de 5%—, mas um tema passou batido no radar de muitos especialistas. E isso expõe problemas estruturais na forma como se observa a China: a reforma estrutural que dará ao Partido Comunista maior controle sobre estruturas de Estado.
O projeto, a ser votado pela Assembleia Popular Nacional chinesa, pretende fazer mudanças que darão ao PC Chinês maior dominância sobre o Conselho de Estado (o gabinete do país) em áreas como governança, economia e tecnologia. Se aprovado (e provavelmente será), ele dará à legenda um controle ainda maior sobre pontos-chave da política nacional, ampliando a centralidade do partido nas decisões de Estado e em todos os níveis governamentais.
Para muita gente, isso pode não representar uma notícia significativa. Afinal, não é o Partido Comunista que dá as cartas na China desde 1949? Bem, sim e não. É óbvio que boa parte das decisões estratégicas ainda se dão por membros do partido, mas isso geralmente se dá por estruturas de Estado.
Com Xi Jinping, essas fronteiras entre uma coisa e outra estão cada vez mais borradas, o que causa confusão para muita gente que não conhece o funcionamento do sistema político. Vários órgãos antes ocupados por burocratas não necessariamente membros da legenda majoritária chinesa agora têm supervisão direta do PC Chinês. Fica difícil definir onde termina o Estado e onde começa o partido.
O que me leva para o principal ponto de hoje: como muitas vezes negligenciamos a política doméstica chinesa em prol de manchetes mais extravagantes sobre o que a China faz ou deixa de fazer fora das suas fronteiras.
Entender o funcionamento de suas instituições e do PC Chinês é fundamental para compreender a própria China. Mas como isso envolve um conhecimento mais específico, com referências radicalmente distintas das organizações governamentais a que estamos acostumados, quase sempre o tema é visto como árido e ignorado.
Percebo isso até mesmo aqui na Folha. Hoje completo três anos colaborando com o jornal. Ao longo deste tempo, textos que falam de uma China como potência diplomática e bélica ou que abordam o país como algo exótico e inatingível costumam atrair muito mais atenção do que aqueles em que me dedico a (tentar) traduzir ritos próprios da política doméstica.
Essa tendência é compreensível, dado o quanto estamos acostumados a narrativas alarmistas, mas também preocupante o bastante para que não seja ignorada.
O Partido Comunista Chinês é enorme e tem divisões espalhadas por vários pontos da sociedade. É bastante óbvio que cada vez mais se aproxima de uma postura centralizadora, baseada no líder Xi Jinping, mas ele não é só isso. O partido está nos bairros, nas empresas, nos movimentos sindicalistas. Tem milhões de membros e não é um monólito. Nas suas fileiras existe um moderado espaço para discordâncias e questionamentos —aquilo que Pequim gosta de chamar de democracia chinesa.
Não é o que foi na época maoísta, como gosta de pensar a esquerda, e não é o demônio que a direita prega. É uma organização política ampla, diversa e bastante diferente do sistema de governança ocidental.
Relacionar-se com a China também passa por esforçar-se para entender como as coisas funcionam internamente. É claro que a meta de crescimento para 2024 tem impacto mais imediato para a economia global, mas se quisermos estabelecer um olhar mais apurado no longo prazo, é preciso dar atenção a notícias menores, mas com repercussões mais duradouras.
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