Em qualquer outro país latino-americano, essa cena seria rara. Mas, no campeão de demonstrações de institucionalidade da região, o Chile, tudo ocorreu de modo republicano, institucional, sem deixar de lado a emoção, nas lágrimas da família e de gente que viajou na madrugada de várias regiões para estar no La Moneda na manhã da última sexta (9).
O objetivo: assistir ao funeral do ex-presidente Sebastián Piñera (2010-2014 e 2018-2022), morto no último dia 6 num acidente de helicóptero, em que se sacrificou pela irmã, por um amigo e seu filho.
É muito difícil julgar um personagem político dessa envergadura quando ele ainda estava ativo na política. Se fosse o caso de fazer um balanço de ex-presidentes como Eduardo Frei Ruiz-Tagle (1994 e 2000) ou Patricio Aylwin (1990 e 1994), a tarefa seria mais fácil —seus principais feitos e erros já foram reconhecidos.
Impactante ver hoje o atual mandatário, Gabriel Boric, que foi protagonista dos protestos anti-Piñera de 2011, solene, recebendo, ao som de uma marcha fúnebre, o caixão com os restos mortais daquele que serviu de contraponto para forjar o início de sua carreira política.
Porém, este momento nos mostra que a história é dinâmica e que prevaleceu em Piñera a ideia de estender pontes, na maioria das vezes, em vez de rompê-las.
Quando as manifestações antigoverno não paravam, em 2019, foram Piñera e Boric que articularam o acordo para dar início aos debates sobre a nova Constituição, acalmando as manifestações.
Foram também os dois juntos, em nome de todos os outros ex-presidentes vivos, que neste ano do 50º aniversário do golpe redigiram o “Compromiso por la Democracia, siempre”, no gabinete presidencial, um documento assinado pelos demais ex-mandatários.
Piñera cometeu o erro de não ter a sensibilidade inicial de entender o que ocorria nas ruas em 2019. Mostrou distanciamento da sociedade, mas acabou calibrando o tom e chamou para si a responsabilidade de iniciar o debate sobre a polêmica Constituição.
Enquanto isso, iniciada a pandemia de Covid-19, o Chile acabou sendo uma referência de compra e aplicação rápidas de vacinas.
Piñera recebeu o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro em 2019 em sua viagem ao Chile, ouviu quieto o que o visitante e seus ministros disseram sobre a ditadura de Augusto Pinochet. Disseram que ela tinha livrado o Chile do comunismo e do narcotráfico —todas falácias, demonstradas hoje em estudos.
Elegantemente, Piñera se despediu de Bolsonaro e chamou os jornalistas que cobriam o encontro. Disse que a sociedade chilena hoje repudiava os valores pinochetistas, que jamais evocaria de novo uma política anti-direitos humanos e que daquela época (1973-1990) não havia nada a ser celebrado.
Piñera voltou a entrar em choque com Bolsonaro quando, em 2019, o brasileiro lançou-se contra Bachelet. “Senhora Michelle Bachelet. Se não fosse pelo pessoal do Pinochet, que derrotou a esquerda em 1973, entre eles, seu pai, hoje o Chile seria uma Cuba”, disse o brasileiro.
Piñera, então, deu uma declaração pública no La Moneda, em que disse: “Não compartilho absolutamente a alusão feita pelo presidente Bolsonaro sobre uma presidente do Chile e especialmente num tema tão doloroso como a morte de seu pai.”
Por fim, é equivocado dizer que Piñera significou o “retorno da direita depois de Pinochet” ou uma “continuidade” do pinochetismo. Todo o seu esforço foi no sentido de criar uma nova direita, democrática, que rejeitasse abusos dos direitos humanos e estivesse mais próxima de uma social-democracia.
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