O anúncio do governo de Israel indicando a ampliação temporária da entrega de ajuda humanitária à Faixa de Gaza promete alívio, segundo agências que atuam levando mantimentos para a população, mas não deve resolver os gargalos que dificultam a entrega de suprimentos básicos ao território palestino.
“É ótimo ter mais rotas de acesso a Gaza”, diz Sarah Schiffling, especialista em logística humanitária da Hanken School of Economics, na Finlândia, em entrevista à Folha. Segundo ela, entretanto, não há expectativa de que isso dê fim ao que tem sido visto como obstrução ao trabalho das organizações.
“Precisamos lembrar que Gaza está completamente isolada do mundo, então tudo que entra tem que passar pelo controle burocrático de Israel. Quase tudo precisa ser levado por essas organizações”, afirma Schiffling.
Um estudo da Oxfam publicado na quarta-feira (3) indicou que as pessoas no norte de Gaza têm sido forçadas a sobreviver com uma média de 245 calorias por dia. Isso representa menos de 12% da ingestão diária recomendada de 2.100 calorias por pessoa.
No final de março, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) ordenou que Israel tome todas as medidas necessárias para garantir o fornecimento de alimentos básicos à população na Faixa de Gaza.
Segundo Schiffling, suprir toda a necessidade da população do território demandaria a permissão da passagem de 600 caminhões por dia —aproximadamente quatro vezes mais do que tem autorização para entrar atualmente.
Abertura temporária
O anúncio de abertura temporária feito pelo gabinete de Binyamin Netanyahu envolve o porto de Ashdod e a passagem de Erez, no norte do território. Até aqui, a entrega de mantimentos tem ocorrido especialmente por dois pontos na fronteira sul, em Rafah e Kerem Shalom, além da chegada de poucos navios e da entrega por via aérea.
Desde o início da guerra, Israel autorizou a passagem de 19.226 caminhões com ajuda humanitária, segundo a UNRWA, agência da ONU para refugiados palestinos, uma média de 119 por dia em que as duas passagens no sul do país estiveram abertas. Cerca de três quartos desses caminhões levam comida e os demais levam materiais médicos, de abrigo (como tendas), alimentos para animais e peças de reposição para máquinas.
A abertura de uma nova rota de entrada e distribuição pode ajudar neste processo e é vista como especialmente relevante por ser na parte norte do território. Entretanto, Israel ainda precisa explicar como vai ser o processo de liberação pela passagem de Erez, pois tudo o que entra em Gaza continua a ser checado pelas autoridades israelenses —um processo lento e complexo.
Gargalos
As agências humanitárias em operação em Gaza alegam que atualmente há 280 toneladas de mantimentos esperando autorização para entrar na Faixa de Gaza, e que 1.300 caminhões estão prontos para entrar assim que receberem autorização.
Para levar mantimentos para o território é preciso seguir uma série de regras impostas por Israel. Tel Aviv tem sido acusada de usar a burocracia para atrapalhar o fornecimento de ajuda a Gaza. Segundo a ONG Refugees International, por exemplo, Israel impede de forma consistente as operações de ajuda, bloqueando operações e resistindo à implementação de medidas que melhorariam o fluxo.
Israel nega, e alega que a intenção do controle é evitar que materiais entregues possam ter uso militar pelo Hamas.
Segundo a pesquisadora Abby Stoddard, diretora da consultoria britânica Humanitarian Outcomes, essa burocracia é um “problema imenso”. “A ajuda humanitária está sendo sufocada. É preciso ter mais pontos de entrada de mantimentos e o processo precisa ser menos complicado e se tornar mais rápido”, afirma.
Muitos bens precisam ser pré-aprovados, e muitos são proibidos. Ração para animais são permitidas, por exemplo, mas geradores de energia elétrica e equipamentos de purificação de água continuam sendo vetados, segundo Schiffling, da Hanken School. “Este processo pode ser muito demorado e de forma geral é muito pouco transparente, sem uma explicação sobre o que pode ser entregue ou não”, diz.
Como a Folha mostrou, uma remessa de pacotes enviados pelo Brasil chegou a ficar bloqueada na entrada da Faixa de Gaza no início de março.
Logística
A partir de dados do Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla em inglês) e de uma descrição de Schiffling, que é especialista no tema, é possível traçar o caminho seguido por essa ajuda até chegar à população.
O processo de distribuição de mantimentos começa com a chegada deles ao Egito, seja de avião pelo Cairo, por Porto Said ou por Al-Arish, ou de navio também por Porto Said. De lá, caminhões levam as cargas por no mínimo 57 km e no máximo 370 km até a fronteira sul da Faixa de Gaza.
Quando chega à fronteira, a carga precisa ser retirada do caminhão que a transportou no Egito e carregada em veículos que operam em Gaza, pois não há caminhões atravessando a fronteira.
Neste ponto é feita a fiscalização da carga, e há armazéns para guardar o material nesse processo em que eles são retirados de um caminhão e colocados em outros destinados a fazerem a distribuição.
“A partir daí, os caminhões que podem circular em Gaza precisam organizar a liberação para poder circular nas rodovias do território. Muitas regiões são mais perigosas e outras estão parcialmente destruídas, então há ainda o desafio de saber que caminhos são acessíveis e podem ser usados”, explica Schiffling.
Há diferentes pontos de distribuição dessa ajuda humanitária. Muitos são em hospitais e campos de refugiados, mas há ainda outros locais que são usados para que as pessoas que estão passando necessidade possam ser ajudadas.
Para Elizabeth Stites, pesquisadora de conflito, violência e humanitarismo na Universidade Tufts, nos EUA, os protocolos complexos podem aumentar o risco para os trabalhadores de organizações de ajuda humanitária. “As rotas estão caóticas e congestionadas, com tráfico de civis e de militares, em um ambiente complexo”, diz. Isso pode forçar as equipes a viajar à noite, o que aumenta o perigo, e pode atrapalhar a coordenação de movimentação feita com os militares israelenses.
Riscos
O processo de entrega de ajuda humanitária já gerou situações caóticas com vítimas. Em fevereiro, militares israelenses abriram fogo contra civis que se aglomeravam para receber alimentos em torno de caminhões com mantimentos.
No início de março, pacotes lançados de aviões atingiram civis e mataram cinco pessoas e deixaram dez feridos. Algumas semanas depois, 12 palestinos morreram afogados ao tentarem buscar pacotes que haviam caído no mar.
Além do transporte por caminhões e por aviões, navios chegaram a ser usados para levar mantimentos, especialmente pela ONG World Central Kitchen, que foi alvo de um ataque de Israel que deixou sete mortos. A entrega pelo mar pode levar uma carga equivalente às de dez caminhões, mas enfrenta desafios por não haver um porto bem estruturado para atracar as embarcações.
Além disso, desde o ataque à WCK, essa via foi interrompida, e agora está sendo reavaliada, considerando inclusive a possibilidade de os EUA construírem um porto flutuante, como prometido por Joe Biden.
Apesar da complexidade, a vantagem do transporte por terra é que ele é mais rápido e mais fácil. “A população está com fome agora, e portanto há uma cobrança para que mais ajuda possa entrar mais rapidamente para ser distribuída”, afirma Schiffling.
“Todo este processo é muito difícil pois a ordem civil está rompida em Gaza. Não há segurança, as pessoas estão desesperadas para alimentar suas famílias, então há muitas brigas e revoltas, o que aumenta ainda mais os riscos para as pessoas que trabalham com isso”, completa a especialista.