No final de agosto, operações policiais e militares no chamado Triângulo Dourado, entre Laos, Mianmar e Tailândia, prenderam centenas de pessoas de diversas nacionalidades e recolheram dezenas de milhares de aparelhos eletrônicos.
As ações visavam esquemas de golpes digitais que envolviam países não só do Sudeste Asiático ou da Ásia, mas também da América Latina, Brasil inclusive.
Lançadas após um encontro de chanceleres dos três países, mais a China, as operações se concentraram numa zona econômica especial na província de Bokeo, no Laos, e incluíram forças chinesas.
De acordo com o Ministério de Defesa laosiano, no dia 29 foram apreendidos cerca de 11 mil celulares, 10 mil computadores de mesa e 200 notebooks. Antes, no dia 20, foram cerca de 2.000 celulares, 700 computadores e 30 notebooks.
Mais significativamente, foi divulgado então o número de detidos: 771, entre eles 282 mulheres. Eram de Laos (275), Mianmar (231), China (106), Filipinas (73), Índia (29), Indonésia (20), Etiópia (11), Uganda (6), Moçambique (6) e o restante de Vietnã, Tunísia, Geórgia, Burundi e Colômbia.
Nenhum brasileiro foi listado, ao menos nos anúncios oficiais. Mas até pouco tempo antes da operação, havia dezenas. A Folha ouviu dois deles, que deixaram a região em junho.
Lucas Silveira, 31, aceitou dar seu nome, mas não quis dizer em que país está hoje como asilado, apenas que é na Europa.
Em setembro do ano passado, ele trabalhava como motorista em Porto Alegre, procurando outro serviço. “Aí vi essa oportunidade, trabalho na Ásia. Foi por um grupo de Facebook, vagas de emprego. Fiz entrevista no mesmo dia, falei com alguns brasileiros de lá, e 15 dias depois me mandaram a passagem. Fiz escala em São Paulo, em Dubai, fui à Tailândia, peguei um carro até a fronteira e atravessei de barco”.
“Chegando lá, foi tudo diferente do que falaram. Tinha que trabalhar 12 horas, muita multa, o alojamento era precário, dez pessoas no quarto. A gente trabalhava com jogos de cassino online, oferecendo promoções para brasileiros. Só que as empresas às vezes fechavam as plataformas, ficavam com o dinheiro dos clientes. Era basicamente uma enganação. Eu ligava para 400 pessoas por dia.”
Seu passaporte ficou com a empresa, ao chegar. “Para recuperar, falam que, se a gente quer ir embora, tem que pagar uma multa de 20 mil yuans [R$ 16 mil]. Fica difícil de sair.” Mas um episódio o fez tomar uma decisão. “Teve um brasileiro lá que espancaram, porque suspeitavam que estava roubando a empresa. Na nossa frente. Eu disse, ‘cara, não vou ficar aqui’.”
Para recuperar o passaporte sem pagar a multa, buscou saídas online. “Encontrei um departamento de segurança [da zona econômica], todos policiais chineses. Porque a polícia local de Laos era toda comprada pela empresa. Quando pedi ajuda, dizendo que tinha que ir embora e não podia ficar sem meu documento, eles ligaram para a empresa, trouxeram meu passaporte, aí eles me tiraram na hora de lá.”
Silveira afirma que, depois que ele descobriu esse caminho, em junho, outros brasileiros o seguiram —ele afirma que 14 brasileiros conseguiram sair da empresa sem pagar multa no total.
Questionado se recebia algum salário mensal, ele responde que “pagavam do jeito que queriam, atrasado, com desconto. Tipo, eu ia ao banheiro, demorava, tinha desconto. Mas eles pagavam”.
O salário era parte em dólar, em bitcoin, e parte em yuan, a moeda chinesa. Sobre o asilo na Europa, agora, diz que está “tudo certo”. “Estou mais tranquilo. Meio que passou o trauma. Estou começando a reviver, né?”.
Outro brasileiro que já está de volta ao Brasil e não quis revelar seu nome faz relato semelhante. Falou com um vizinho que estava procurando emprego. Então, uma brasileira ligou e ofereceu a ele uma vaga na Tailândia.
Ele narra que, na videochamada, outros brasileiros afirmaram que o esquema era seguro. Os empregadores pagavam tudo: passagem, hotel, comida.
Na chegada, descobriu que a vaga não era para cuidar de uma rede social, mas de um jogo de azar online. Ele conta que seu passaporte foi retido, e a carga horária, subitamente aumentada de 12 horas para 14 horas. Escapou em junho, no rastro de Silveira.
O brasileiro confirma o número de 14 compatriotas que saíram do local em junho. Segundo ele, havia cerca de 40 cidadãos do país trabalhando na empresa.
Questionado sobre salário, responde que no começo seus empregadores pagavam, mas depois, não mais, e acrescenta que já tinha dois meses de salário atrasado quando voltou.
Ele voltou ao país natal em julho. Ao justificar porque não quis dar seu nome, diz que a empresa tem ligação com o Brasil. Mas aceitou falar para alertar outros brasileiros —e também porque, na zona econômica, conheceu sua namorada, que é de Mianmar. Ele conta que vem se esforçando para trazê-la ao Brasil junto ao Itamaraty.
Além de homens, também mulheres brasileiras foram atraídas ao Triângulo Dourado, para atuar nos golpes digitais. A TV Record acompanha esses casos desde 2022, quando uma brasileira de 22 anos desapareceu em Mianmar, caso relatado no Cidade Alerta. Em julho, o Domingo Espetacular entrevistou uma jovem de 27 anos que havia acabado de voltar do Laos, no mesmo esquema dos dois brasileiros.
Procurada ao longo desta semana, a Polícia Federal não respondeu. Mas a Record ouviu do delegado Leonardo Reis Guimarães que a PF investiga os casos desde o final do ano passado e que “chama a atenção o fato de ter vítima do Distrito Federal ao Rio Grande do Sul, de Roraima, Rondônia, do Rio de Janeiro, do Mato Grosso”, enganados por empresas do Sudeste Asiático.
Além do Laos, as operações policiais recentes na região se estenderam para países como a Tailândia, que prendeu e extraditou, a pedido da China, o malaio Zhang Yufa, acusado de chefiar uma organização que teria enganado milhões, sobretudo chineses, num esquema de pirâmide com criptomoeda. Também Mianmar, que desmantelou com apoio chinês uma organização de fraude digital na fronteira com a província de Yunnan envolvendo centenas de pessoas.
O encontro do início de agosto dos chanceleres do grupo de Cooperação Lancang-Mekong, que inclui ainda Vietnã e Camboja, havia afirmado em comunicado estar “profundamente preocupado com a gravidade das ameaças persistentes de crimes transfronteiriços”, inclusive apostas online, enfatizando a necessidade de cooperação.
Questionado sobre as operações e a presença de brasileiros nas organizações criminosas, o porta-voz do Ministério do Exterior da China, Lin Jian, não respondeu especificamente, dizendo apenas que os países da região, inclusive a China, buscam “intensificar os esforços na repressão de crimes como o jogo online e o tráfico de seres humanos”.