Quase um ano após congelar sua política de concessão de vistos a refugiados afegãos que fugiram do regime fundamentalista do Talibã, o Brasil retoma o recebimento e a análise desses pedidos e reconfigura a política de acolhida para delegar a organizações da sociedade civil o cuidado e o abrigamento dos refugiados.
O Ministério da Justiça e da Segurança Pública publica na próxima sexta-feira (30) um edital público para selecionar as ONGs que, daqui em diante, terão de arcar com os custos de transporte dos afegãos ao Brasil, de moradia para os imigrantes por pelo menos um ano, de aulas de português e de atividades de reinserção no mercado de trabalho.
Como a Folha adiantou em maio, o Brasil passa assim a adotar pela primeira vez o chamado modelo de patrocínio comunitário para o acolhimento dos imigrantes, algo comum em países como os Estados Unidos. Com isso, a ida do refugiado ao país está atrelada à disponibilidade de vagas por essas organizações credenciadas.
Antes, os afegãos que desejavam obter o visto de acolhida humanitária no Brasil buscavam diretamente o serviço consular brasileiro em países como Irã e Paquistão, vizinhos do Afeganistão para onde fugiram.
Agora, para que seus vistos sejam analisados pelo Itamaraty, eles terão de ser indicados ou pelas próprias ONGs ou pela OIM, braço da ONU para migrações, e o Acnur, a agência de refugiados das Nações Unidas.
A característica do novo modelo de acolhida desperta preocupações de organizações de direitos humanos. Por um lado, pela possibilidade de as ONGs privilegiarem alguns grupos de refugiados, como aqueles que são cristãos. Por outro, de reforçar-se uma prática de cobrança de dinheiro para a indicação para o visto, algo que já ocorreu.
Os envolvidos na nova política afirmam que o Ministério da Justiça estará atento a tudo isso na hora de selecionar as organizações sociais que participarão do acolhimento.
O acolhimento aos imigrantes afegãos no Brasil, iniciado pouco após o retorno do Talibã ao poder após as saídas das tropas ocidentais do país da Ásia Central, acarretou desafios —pela língua (falam persa como idioma original), pelos costumes e pela ausência de uma comunidade anterior de afegãos no país que ajudasse na sua inserção.
A baixa disponibilidade de vagas em abrigos também levou a cenas repetidas de imigrantes com vistos humanitários se aglomerando no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, e ali vivendo por dias ou meses. Agravadores como o surto de sarna entre os refugiados que ocorreu em 2023 despertavam comoção que pouco depois se extinguia, até que a situação voltava a se repetir.
Intensificada pela atuação de coiotes, a situação escalou ao ponto de o Brasil se tornar apenas um país de trânsito para os imigrantes, que de Guarulhos iniciavam rotas aéreas e terrestres rumo aos EUA, passando por áreas perigosas como a selva de Darién, entre Colômbia e Panamá. Esse fator esteve na ponta da decisão do governo brasileiro de congelar a concessão de vistos e rever sua política em setembro passado.
Desde 2021, quando estabeleceu sua política de vistos, o Brasil emitiu cerca de 12.700 documentos para cidadãos do Afeganistão, mas cifras oficiais analisadas pelo governo indicam que somente 44% desses migrantes têm permanecido em território nacional. Foi também nesse período que esse grupo de imigrantes começou a cruzar o estreito de Darién.
Relatório do Acnur aponta que inicialmente os afegãos que cruzavam a selva entre a Colômbia e o Panamá viviam a ao menos um ano no Brasil. Mas, a partir de 2023, a despeito de que todos que estavam ali haviam partido do Brasil, nem chegaram a viver no país. Foi a consolidação do Brasil como trânsito.
De certo modo, é mais uma medida do Ministério da Justiça que visa coibir o uso do país como trânsito para uma rota rumo ao norte, que oxigena redes de coiotes e tráfico de pessoas.
Recentemente a pasta também proibiu que imigrantes que estejam em conexão aérea no país e sem visto possam pedir refúgio —a estratégia vinha sendo usada especialmente por grupos da África e da Ásia para ficar no Brasil por alguns dias e depois ir aos EUA.
A Defensoria Pública da União (DPU) enviou em maio passado questionamentos e recomendações ao Ministério da Justiça e ao Itamaraty questionando a nova política de patrocínio comunitário e demonstrando preocupação. Até hoje, não teve resposta.
Milhares de solicitações de vistos humanitários que haviam sido feitas até aqui, mas cujos solicitantes ainda não haviam sido entrevistados, serão descartadas agora pelo Ministério das Relações Exteriores, priorizando-se as indicações que chegarem daqui em diante.