A União Europeia considera que o G20 é hoje o fórum mais adequado para dirimir pendências entre os países mais e menos desenvolvidos, a começar pelas divergências acerca da Guerra da Ucrânia, e o Brasil tem papel crucial como mediador entre os dois grupos.
Foi o que disse à Folha Josep Borrell, o chefe da diplomacia do bloco de 27 países europeus. Ele participará da primeira reunião do G20 sob a presidência brasileira, que ocorrerá com chanceleres de 19 nações e dois blocos econômicos no Rio de Janeiro nestas quarta (21) e quinta (22).
“Precisamente porque o G20 é o fórum mais adequado para enfrentar os desafios globais, discutiremos estas complexas tensões geopolíticas. Aqui, o papel fundamental do Brasil como ator global torna-se crucial, conectando países em desenvolvimento e desenvolvidos e mostrando que o multilateralismo funciona em tempos de crise”, declarou.
O espanhol respondeu por escrito a quatro perguntas sobre temas específicos (acordo UE/Mercosul, G20, Guerra da Ucrânia e Israel–Hamas) enviadas há 11 dias, sem a possibilidade de adendos. Assim, temas como o ataque de Donald Trump à Otan [aliança militar ocidental], a morte do opositor russo Alexei Navalni ou a crise provocada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao comparar a ofensiva de Israel em Gaza ao Holocausto nazista não foram abordados.
O último item afeta justamente a imagem de mediador pretendida por Lula e corroborada por Borrell. Não que fosse esperado algum comentário mais duro: o tom geral do diplomata europeu é de buscar consensos.
“A presidência do G20 estabeleceu prioridades que colocam os interesses e preocupações do chamado Sul Global: lutar contra a fome, pobreza e desigualdade; apoiar o desenvolvimento sustentável; e promover a reforma da governança global”, afirmou.
Para isso, disse Borrell, “podem contar com o total apoio da UE”. “Todas as crises geopolíticas, a exemplo da guerra de agressão da Rússia, têm grande impacto nas populações mais vulneráveis, e estamos muito conscientes destas preocupações”, completou, celebrando a inclusão da União Africana no G20.
O Brasil, apesar de ter condenado a invasão de Vladimir Putin na ONU, não aderiu às sanções ocidentais contra Moscou e tem uma relação próxima com o Kremlin —Lula evitou até questionar a condição da morte de Navalni na cadeia.
Outros países que jogam com as duas pernas, como a mais poderosa Índia, também questionam o discurso ocidental acerca da Rússia. Interesses econômicos prevalecem: no caso brasileiro, de fertilizantes ao óleo diesel russo; no indiano, um mar de petróleo comprado com desconto.
Borrell, de todo modo, traz a mensagem europeia acerca da guerra. “A Ucrânia está na linha da frente entre a democracia e a autocracia, entre um mundo governado pela lei e um mundo onde os países poderosos impõem a sua vontade”, afirmou.
“Se Putin prevalecer, isso enviaria um sinal muito perigoso de que países poderosos podem mudar as fronteiras arbitrariamente e que ‘o poder faz o direito’. Isto é importante não só para a Europa, mas também para América Latina, Ásia, África e o mundo como um todo”, declarou o diplomata.
Até aqui, o discurso não encontrou ressonância fora do Ocidente e de aliados como Japão, Coreia do Sul e Austrália. Como já notou o presidente francês, Emmanuel Macron, o tal Sul Global —um termo de fácil absorção que diz pouco do ponto de vista político, dado que seus atores têm interesses díspares— não comprou a narrativa ocidental da guerra.
Questionado acerca do bloqueio do Congresso americano ao pacote de R$ 300 bilhões em ajuda bélica para Kiev, Borrell disse que “continuamos confiantes de que a Ucrânia receberá um apoio substancial dos EUA”. E vendeu o próprio peixe, lembrando do pacote de R$ 270 bilhões que a UE aprovou para apoiar a economia ucraniana nos próximos anos, que não tem natureza militar.
No campo bélico, segundo o diplomata, “estamos a intensificar o suprimento militar, a investir no revigoramento da nossa indústria de defesa e a renegociar contratos de defesa com parceiros fora da Europa para dar prioridade às entregas de armas e munições à Ucrânia”.
Em relação a Israel, Borrell adota uma posição mais ampla, diferentemente do que fez Lula no fim de semana. “Acredito que a luta deve acabar. Esta é a única forma de resolver a catastrófica situação humanitária em Gaza e garantir a libertação imediata de todos os reféns restantes”, afirmou, reiterando críticas ao atentado do Hamas de 7 de outubro de 2023.
Por fim, em um tema bilateral importante, Borrell repetiu sua defesa do acordo UE-Mercosul, que está parado devido a divergências acerca do protecionismo europeu na área agrícola.
“O acordo se tornará a base para uma maior cooperação em muitas questões, desde as alterações climáticas aos direitos humanos, da transformação digital à segurança e à luta contra o crime organizado”, disse. Questionado sobre o peso dos protestos de agricultores em países como a França, ponderou: “É claro que precisamos ter em conta todas as sensibilidades envolvidas; e isto inclui os agricultores e grupos ambientalistas, bem como aquelas de Estados-Membros específicos.”