Há três anos, a democracia dos Estados Unidos sofreu seu maior teste: a invasão do Capitólio, sede do Congresso, por apoiadores de Donald Trump que tentavam impedir, pela violência, a confirmação da vitória de Joe Biden.
Agora, conforme mais um teste se aproxima em novembro, na primeira eleição presidencial após o ataque, a memória do episódio tornou-se alvo central da disputa. De um lado, democratas usam as imagens para invocar o medo de um novo governo Trump; de outro, a campanha do ex-presidente adota a estratégia revisionista de retratá-los como patriotas —ou, em uma terceira frente, como fantoches do FBI.
Um quarto da população acredita na teoria da conspiração de que a invasão foi organizada e encorajada pela polícia federal americana, segundo uma pesquisa de opinião realizada pelo Washington Post e a Universidade de Maryland entre 14 e 18 de dezembro passado. O percentual sobe para 30% do total de eleitores independentes, 34% dos republicanos e 44% dos que dizem que vão votar em Trump.
Nesta sexta-feira (5), enquanto Biden fazia um discurso em que relembrava o 6 de Janeiro como a prova da ameaça que o ex-presidente representa à democracia, o republicano compartilhava em seu perfil na rede social Truth artigos que acusam, sem provas, o FBI de interferência na eleição de 2020 em favor do democrata.
“Ao tentar reescrever os acontecimentos de 6 de Janeiro, Trump está tentando roubar a história da mesma forma que tentou roubar a eleição”, afirmou Biden nesta sexta, em seu primeiro discurso público de campanha em 2024.
O evento estava programado para este sábado (6), no aniversário da invasão, mas precisou ser antecipado em razão das condições climáticas adversas previstas para a data.
Carregando ainda mais o simbolismo, a campanha escolheu como local Valley Forge, na Pensilvânia. Foi nessa região em que George Washington e suas tropas enfrentaram um dos momentos mais difíceis da guerra de independência americana, no inverno de 1778-79, para emergirem dali mais fortes do que nunca, como narra a mitologia nacional.
O paralelo desejado pelos democratas é com a democracia, mas funciona também com a própria candidatura de Biden. O atual presidente é desaprovado por 55,5% da população, visto como velho demais para o cargo, aos 81 anos, e culpado pela maior inflação do país em décadas.
Depois de meses tentando emplacar, sem sucesso, as conquistas de seu mandato —como o desemprego baixíssimo, embaladas no rótulo “Bidenomics”—, a campanha começa o ano eleitoral voltando à receita básica que lhe deu a vitória em 2020: Trump precisa ser derrotado a qualquer custo.
“A democracia ainda é a causa sagrada dos EUA?”, questionou Biden nesta sexta, logo no início de seu discurso. “Isso não é uma pergunta retórica, acadêmica ou hipotética. Se a democracia ainda é a causa sagrada dos EUA é a questão mais urgente do nosso tempo. É disso que se trata a eleição de 2024.”
Em seguida, o democrata contrastou sua promessa –um futuro democrático e de progresso para os EUA– com a que atribui a Trump, voltada ao passado e à vingança. Biden chegou a comparar o vocabulário do republicano com o da Alemanha nazista.
Em preparação para o discurso, o presidente teve um almoço com historiadores e acadêmicos na Casa Branca na quarta-feira (3), fora da agenda oficial, para discutir as ameaças à democracia e suas instituições nos EUA e no mundo.
Além da fala envolta em simbolismos nesta sexta, a equipe do presidente também lançou uma nova propaganda com imagens dos ataques ao Capitólio e das marchas de supremacistas brancos em Charlottesville em 2017.
“Nós sabemos a verdade, porque vimos com os nossos próprios olhos. Não foi uma história que nos foi contada. Estava na TV repetidamente. Vimos com os nossos próprios olhos”, disse Biden. “A multidão de Trump não era uma manifestação pacífica. Foi um ataque violento. Eles eram insurrectos, não patriotas. Não estavam lá para defender a Constituição. Estavam lá para destruir a Constituição.”
A fala responde à estratégia de Trump de retratar os invasores como patriotas —narrativa que foi ganhando corpo nesses três anos, quanto mais os eventos ficaram para trás no tempo e no noticiário e na memória do país.
O ex-presidente chegou a reproduzir, em seu primeiro comício de campanha, uma música gravada por réus acusados criminalmente por envolvimento com o ataque. Caso volte à Casa Branca, o empresário prometeu perdoar os participantes do episódio –chamado por ele de “um belo dia”.
Além das menções às teorias da conspiração sobre um suposto envolvimento do FBI na eleição, Trump ainda compartilhou nesta sexta um artigo intitulado “a histeria do 6 de Janeiro é como a mídia e outros democratas estão evitando prestar contas pela manipulação da eleição de 2020”.
Partindo para o ataque, a campanha do republicano também está se esforçando para pintar Biden como a verdadeira ameaça à democracia americana. Circula entre apoiadores do republicano, por exemplo, uma lista de sinais do fascismo atribuídos ao democrata, como “confisco de armas”, “destruição da religião” e “eleições fraudulentas”.
Os números do 6 de Janeiro
Três anos depois, o episódio ainda não foi encerrado na Justiça. Até agora, cerca de 1.230 pessoas foram acusadas formalmente por crimes relacionados à invasão do Capitólio. Dessas, 730 se declararam culpadas, e outras 170 foram condenadas por um juiz ou júri, segundo monitoramento dos casos feito pela Associated Press. Apenas dois réus foram inocentados de todas as acusações.
Cerca de 750 pessoas foram condenadas, sendo que quase dois terços delas receberam como sentença algum tipo de prisão; os demais, outros tipos de penas. A maior sentença aplicada até agora foi a Enrique Tarrio, líder do grupo extremista Proud Boys, condenado a 22 anos de prisão.
Uma reviravolta, no entanto, pode acontecer nos próximos meses, quando a Suprema Corte vai analisar o recurso de um réu. A apelação questiona a acusação de obstrução de um procedimento oficial —a certificação da vitória de Biden— usada pela promotoria contra ele e diversos outros envolvidos na invasão. Por isso, a decisão dos juízes pode ter um impacto em um grande número de casos relacionados ao episódio.
E resta ainda uma dúvida: quem plantou as duas bombas caseiras próximas do escritório dos comitês nacionais republicano e democrata no dia 5 de janeiro, véspera do ataque. A investigação, até agora, não chegou a nenhum suspeito.