Na estreia da nova temporada do Podcast ONU News, a chef Bela Gil aborda a questão do trabalho doméstico e de cuidado, um tema central de seu livro “Quem vai fazer essa comida?”, lançado no ano passado.
Bela Gil, que foi premiada com a medalha de Campeã Fome Zero pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, FAO, destaca como o ato de cozinhar, embora essencial, é frequentemente negligenciado e invisibilizado, recaindo principalmente sobre as mulheres.
Setor de cuidados gera US$ 11 trilhões
Na entrevista, ela destaca a desvalorização desse trabalho vital, sublinhando a necessidade de reconhecer, redistribuir e remunerar essas tarefas para promover uma alimentação saudável e justa para todos.
“Cozinhar é trabalhoso. Você precisa planejar, comprar, lavar, cortar, cozinhar, e depois limpar tudo de novo. Esse trabalho doméstico não remunerado representa 13% do PIB mundial, gerando US$ 11 trilhões por ano. Esse valor precisa ser bem distribuído, porque atualmente só uma pequena parcela acumula essa riqueza,”
O dado citado faz parte de um levantamento da Oxfam, que aponta que mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado. A estimativa é que o setor contribuía com pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global, ou mais de três vezes o valor da indústria de tecnologia do mundo.
Alimentação saudável como direito básico
Bela Gil, que além de se dedicar a culinária também é escritora e ativista, defende que a democratização da alimentação saudável passa por reconhecer, redistribuir, reduzir e remunerar o trabalho doméstico. Ela citou estudos mostram que uma comida caseira, feita de forma saudável, pode prevenir diversas doenças crônicas.
“Se sabemos que a comida de panela pode prevenir muitas doenças, como podemos fornecer isso para todos? Quem vai fazer essa comida? Vai cair novamente no colo das mulheres, pobres e pretas?”
Para Bela Gil, a alimentação saudável deve ser vista como um direito básico, equiparado ao acesso à saúde e educação. O direto à alimentação está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e faz parte da Constituição Federal brasileira. A lei engloba dois princípios: estar livre da fome e ter acesso à alimentação adequada e saudável.
Desertos alimentares
Ela acredita que a democratização da alimentação saudável passa por cinco passos fundamentais: acesso ao conhecimento, disponibilidade física dos alimentos, recursos financeiros, ferramentas para preparo e tempo para cozinhar.
Bela Gil lembra que, no Brasil, muitas pessoas vivem em “desertos alimentares”, onde não conseguem encontrar alimentos frescos, apenas produtos ultraprocessados. Segundo ela, alimentos são relacionados a pelo menos 32 doenças. Segundo a OMS, esses alimentos estão associados a um maior risco de câncer e problemas cardíacos.
Ela também destaca a importância de uma abordagem coletiva, em vez de individual, para enfrentar a questão da alimentação. Bela Gil explica que a inadequação alimentar no Brasil está frequentemente ligada à pobreza e aponta desafios como o acesso à água, que dificultam a solução do problema sem considerar intervenções sociais mais amplas.
Agroecologia
Bela defende que políticas públicas são essenciais para promover sistemas alimentares sustentáveis, como a agroecologia e a agricultura regenerativa. Ela lembra que a agricultura é responsável por 45% das emissões de gases de efeito estufa e recomenda práticas agroecológicas para transformar a produção de alimentos.
Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, 31% das emissões de gases de efeito estufa causadas pelo homem têm origem nos sistemas agroalimentares do mundo. As atividades agrícolas contribuem significativamente para as emissões de metano e óxido nitroso, que têm um potencial de aquecimento global maior do que o dióxido de carbono.
Ela destaca a importância de mudanças nos valores governamentais e incentivos fiscais para favorecer a produção de alimentos saudáveis. Bela Gil afirma que, no Brasil, o setor de agrotóxicos paga apenas 5% de imposto, enquanto outros setores pagam 35%.
Apoio político
Na avaliação da chef de cozinha, isso subsidia a produção de alimentos ultraprocessados, que dominam as prateleiras dos mercados. Bela recomenda que para mudar esse cenário é necessário incentivar fiscalmente a agroecologia e limitar o acesso a produtos ultraprocessados.
Bela Gil destacou um outro obstáculo para a adoção de práticas agrícolas mais saudáveis: a distribuição de terras produtivas. Para ela, a democratização da alimentação passa pelo acesso à terra. Assim, Bela afirma que a reforma agrária é é uma das lutas fundamentais para pensar um futuro com boa alimentação mais acessível.