As autoridades migratórias da Argentina têm fechado o cerco contra estudantes brasileiros que tentam entrar no país sem visto específico, e já há relatos de diversos jovens que foram devolvidos ao Brasil nas últimas semanas.
O mesmo vem acontecendo com estudantes de outros países do Mercosul, como Peru e Equador. Em alguns casos, os agentes de imigração proíbem a entrada alegando que os viajantes seriam falsos turistas.
Ao barrar os estudantes, as autoridades de fronteira não chegam a exatamente romper as normas de circulação de pessoas entre os países do bloco, mas sinalizam um recuo de uma postura de permissividade que, até aqui, marcava essa relação de lado a lado.
A Direção Nacional de Migrações, ligada ao Ministério do Interior da Argentina, diz que não houve nenhuma mudança das normas migratórias.
De fato. Segundo as leis do país, turistas podem ficar por lá 90 dias, e esse prazo pode ser prorrogado até o dobro do tempo; para ficar mais, é preciso pedir a residência.
No caso dos brasileiros, para além das regras do Mercosul, esse processo é regulado por um acordo bilateral entre Brasília e Buenos Aires que entrou em vigor em 2009. Por meio dele, os brasileiros conseguem a residência permanente sem precisar cumprir os dois anos de residência provisória concedida a integrantes do bloco.
Esse contexto levou a uma cultura em que estudantes costumavam entrar como turistas sem maiores problemas e, uma vez lá, pediam o direito de permanência —ao todo, são cerca de 10 mil brasileiros estudando no país.
A Folha conversou com empresas que prestam assessoria a alunos nessa situação e elas confirmam que, apesar das orientações de não mentir na imigração, entrar como turista sem sê-lo é uma prática comum.
Para além da flexibilidade das autoridades migratórias, há um encorajamento financeiro a agir dessa forma: as taxas para um visto de estudante pedido com antecedência podem chegar a US$ 550 (R$ 2.723), enquanto um pedido de residência feito já na Argentina pode custar 14 mil pesos (R$ 82).
Mas, a rigor, quem disser que é turista e tiver planos de ficar de vez pode ser mandado de volta para seu país de origem. Foi o que aconteceu com o estudante paulista Felipe, 30. Ele pediu que a reportagem usasse um nome fictício porque ele conseguiu entrar na Argentina depois de ser expulso e está pleiteando a residência permanente.
Felipe se planejou durante um ano para estudar medicina na Universidad Nacional de Rosário. Chegou ao país no dia 30 de janeiro e disse ao agente de imigração que estava lá para fazer turismo —mas ficou nervoso ao ser questionado e acabou entregando ao funcionário um documento que mostrava sua matrícula na faculdade.
Ele foi enviado de volta para São Paulo, ainda tentou se informar sobre o visto de estudante no consulado argentino, mas resolveu pegar um ônibus e entrar na Argentina por terra. Cruzou a fronteira sem maiores questionamentos, mas perdeu a matrícula na universidade. Agora, está no país pensando nos próximos passos.
No caso de Felipe, ele foi barrado sob a justificativa oficial de falta de documentos. Mas a advogada Liziana Rubim, que representa alguns brasileiros vetados na fronteira, tem documentos que mostram que vários são impedidos de entrar sob a justificativa de que seriam falsos turistas.
“É uma conduta arbitrária. Esses brasileiros não só foram mandados embora, mas foram também discriminados”, diz.
Há uma disposição da Direção Nacional de Migrações (4362/2014), em vigor há uma década, que orienta as autoridades de fronteira a como agir ao suspeitar que alguém seja um falso turista —o que inclui pedir passagens aéreas, cartões de crédito, comprovante de hospedagem etc. A norma também determina que o viajante que diz ser turista sem de fato sê-lo seja impedido de entrar no país.
Rubim afirma que seus clientes jamais mentiram. Ela reúne os formulários preenchidos pelos agentes ao vetar os estudantes —um deles mostra que uma brasileira apresentou documentos de matrícula numa universidade e mesmo assim recebeu a classificação de falsa turista.
Questionado, o Itamaraty diz que a embaixada brasileira na Argentina conversou com autoridades locais e orienta os brasileiros a se informar nos consulados argentinos sobre os documentos e requisitos necessários para entrar e permanecer no país. A embaixada do Peru emitiu um comunicado de teor semelhante a seus cidadãos.
Na prática, se o endurecimento da fiscalização se fortalecer mesmo, vai ser um desestímulo aos estudantes brasileiros que pensam em se mudar —ainda mais levando em conta os custos do visto.
“Com [Javier] Milei, já imaginávamos que existiria uma postura mais restritiva em termos de imigração. É próprio desses governos ultraconservadores”, diz Pablo Velasco, professor de política internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
O governo de Javier Milei já sinalizou, por exemplo, querer que estudantes estrangeiros paguem para frequentar as universidades públicas argentinas, hoje gratuitas mesmo para quem é de fora. Esse era um dos pontos na versão original da chamada “lei ônibus”, hoje de volta à estaca zero.
Velasco diz não estranhar o tom brando da embaixada brasileira sobre esse assunto, ao escolher apenas orientar os brasileiros a buscarem informações sobre os vistos. “O Brasil tende a colocar essas questões migratórias mais no plano consular do que no diplomático. Em 2008, tivemos uma crise com a Espanha, que começou a devolver milhares de brasileiros. Poderia ter sido uma crise diplomática grande, mas o Itamaraty soube promover uma desescalada da tensão agindo dessa forma.”