Pouco discutido ante o terremoto geopolítico que um ano da guerra Israel-Hamas promoveu no Oriente Médio, o impacto do 7 de Outubro no cotidiano das duas principais cidades israelenses provocou uma aparente inversão de papéis entre Tel Aviv e Jerusalém, separadas por 1h30 de carro.
Historicamente, a primeira, centro secular, sempre se orgulhou do liberalismo de comportamento —ganhou e promoveu o título de “capital gay do Oriente Médio”, por exemplo, e tem vida social intensa.
Já a cidade sagrada dos três monoteísmos, até por isso, sempre foi mais circunspecta, com uma vida noturna mais regrada e opções gastronômicas no geral menos vibrantes.
Não que isso tenha mudado em essência. As baladas seguem em Tel Aviv, mas frequentadores de ambos os lugares são unânimes em dizer que Jerusalém hoje tem uma atmosfera mais relaxada, algo descolada da crise que engolfa o país.
“Eu nunca achei que fosse andar de forma mais tranquila em Jerusalém. É como se o espírito da tragédia falasse menos ao pessoal daqui”, diz Gilead Karni, 30, que trabalha em uma empresa de TI de forma remota: alterna o tempo entre seu apartamento na zona sul de Tel Aviv e a casa dos pais, na cidade sagrada.
Jerusalém não ignora a tragédia. Há fotos de reféns aqui e ali, e fitas amarelas que simbolizam o desejo de que eles sejão resgatados. Mas Tel Aviv parece viver um luto mais intenso e simbólico. A rua Dizengoff, um dos dínamos da vida social, é quase um memorial a céu aberto.
“Esses dias eu voltei do exterior”, afirma, sem trair o chiste, Sarit Zehavi. Ela é chefe do Centro Alma, referência nos estudos do conflito junto à fronteira israelo-libanesa, e trabalha e mora a poucos quilômetros da zona de atrito, na mira do Hezbollah. Mas era uma brincadeira: ela tinha ido passar o fim de semana em Jerusalém. “Parece outro país.”
As ruas do centro da cidade, como o calçadão Ben Yehuda, ponto de encontro de jovens, muitos deles religiosos, é uma balbúrdia até as 23h, quando tudo cessa por lei —nem a caixa registradora de conveniências 24h passa pagamento de bebida alcoólica a partir do horário.
Em Tel Aviv, diz Karni, há um clima de desânimo misturado a luto coletivo no ar. Vários restaurantes fecharam, dando lugar a iniciativas como a rede Café Otef, cujo nome homenageia o termo em hebraico para a região em torno da Faixa de Gaza.
Foi naquela área que o Hamas perpetrou suas atrocidades em 7 de outubro, quando matou 1.170 pessoas. Os sobreviventes de uma das comunidades abriram o estabelecimento com a ajuda dos donos da rede Arcaffe. Com duas filiais, o local só emprega pessoas que ficaram sem casa desde então.
São 68 mil israelenses deslocados ao todo, sendo 60 mil só no norte do país, segundo o governo. Karni faz uma ressalva reflexiva sobre o Otef. “A gente vai lá e tem bolsinhas, souvenires dos kibtuzim. Ok, é para ajudar, mas dá um tom estranho à iniciativa, além de nos lembrar o tempo todo da tragédia”, diz.
Isso, contudo, está no DNA de Israel, surgido da costela do Holocausto. “Olha, eu perdi um amigo que estava na rave Nova. Mas temos que ir em frente, apesar de o clima não ajudar”, diz uma garçonete que se identificou apenas como Sarah no pub Dublin, no centro de Jerusalém.
Ela fazia referência ao fato de que a cidade está deserta de turistas, que faziam girar sua economia com as magníficas atrações históricas. Na Cidade Velha, epicentro de Jerusalém, o movimento nas banquinhas caiu brutalmente.
“A gente estava melhorando depois da pandemia, aí veio a guerra”, afirma Abdullah, que abrigou a reportagem durante o ataque iraniano da terça passada (1º). Aquele foi um dos poucos momentos no ano em que as sirenes de alerta tocaram em Jerusalém na guerra —em Tel Aviv, são frequentes.
Segundo o Ministério do Turismo de Israel, isso se traduz em números. Em 2019, antes da Covid, o país havia registrado o recorde de 4,5 milhões de turistas estrangeiros. No ano passado, batia 4 milhões em outubro, quando tudo parou, voos foram cancelados, e visitantes acabaram repatriados emergencialmente.
Neste ano, até o começo de outubro, foram 853 mil turistas, com uma previsão de 1 milhão ao fim do ano. O prejuízo é estimado em R$ 27 bilhões movimentados por estrangeiros, e de R$ 1 bilhão vindo de viajantes domésticos.
Até o perfil sugere a baixa diversidade: três quartos já haviam visitado Israel, dois terços são judeus e 30%, cristãos em grupos de viagem evangélicos ou católicos.
Mesmo eles, antes onipresentes, mal são vistos na cidade. Uma ida ao ponto alto de qualquer exploração cristã, a igreja do Santo Sepulcro, onde está o local no qual segundo a tradição Jesus Cristo foi crucificado e enterrado, vem com um choque para quem não visitava Jerusalém havia certo tempo.
Em vez de filas homéricas, que levavam o turista a passar duas horas para chegar ao túmulo em si, uma caminhada de menos de dois minutos a partir da porta da igreja, que está em obras, resolve a questão.
O mesmo ocorre nos sítios cristãos da Cisjordânia ocupada, como Belém, que deixaram de ser uma opção numa região já de difícil acesso. “Estou compensando com trabalho para embaixadas, empresas. Afinal, aqui é uma zona de guerra hoje“, diz o motorista Samir, cuja van costuma operar em Ramallah.
No norte do país, sob fogo constante do Hezbollah, as concorridas praias estão bem esvaziadas, assim como na região em torno do mar da Galileia, cheia de simbolismo cristão. Ali, as famosas vinícolas, que vinham ganhando espaço com o agroturismo, também vivem fechadas.