Anatomia de uma Queda, filme da diretora francesa de Justine Triet, é daquelas obras que pede atenção do espectador para os detalhes desde o primeiro minuto.
Logo na cena de abertura, somos apresentados à personagem Sandra Voyter (vivida pela atriz alemã Sandra Hüller, indicada ao Oscar pelo papel), uma escritora de sucesso que recebe uma estudante de literatura que vem até sua casa, em um chalé no meio da neve, para entrevistá-la.
As duas mulheres conversam enquanto tomam vinho. O clima é relaxado e até de sensualidade. Mas algo logo interrompe aquele momento: uma música muito alta que começa a tocar e as atrapalha. Trata-se de uma versão instrumental de “P.I.M.P.”, um rap clássico com tons misóginos do cantor norte-americano 50 Cent.
Quem aumenta o som é Samuel (o ator francês Samuel Theis), marido de Sandra. O ódio à mulher fica nas entrelinhas.
Em seguida a esse momento, a tragédia irrompe. Ao retornar de um passeio com seu cachorro, o filho do casal, Daniel (o ator revelação Milo Machado Graner), encontra o pai desfalecido no chão, com a cabeça sangrando. A cena, que se passa em meio à neve manchada é impactante.
A morte de Samuel se desdobrará ao longo do filme, uma vez que é cercada de mistério. A família habita uma zona rural na França e, no momento em que ocorre a tragédia, apenas Samuel e Sandra estavam no chalé. Evidentemente, ela passa a ser suspeita de assassinato, mas há dúvidas de que talvez Samuel tenha se suicidado.
O que vamos descobrindo no longa de Justine Triet é uma história sobre um casamento repleto de turbulências que, um ano depois, durante o julgamento de Sandra, passam a ser escrutinadas pela opinião pública.
Anatomia de uma Queda: a (impossível) verdade sobre um casamento
Anatomia de uma Queda está indicado a cinco prêmios no Oscar de 2024 – Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Atriz, Melhor Roteiro Original e Melhor Montagem – e tem grandes chances de sair da festa arrebatando alguns deles. Trata-se de um dos mais desconcertantes entre os longas produzidos em 2023, com qualidades cinematográficas inegáveis.
Para começar, a obra parte do clássico gênero de filme de tribunal, com longas cenas de argumentação entre advogados e testemunhas, ao mesmo tempo que o mistura com um tema premente no cinema e nas séries: as (im)possibilidades de se chegar à verdade em relação ao que acontece dentro de uma relação amorosa.
Esta ideia já encontrou outros lugares interessantes. Um exemplo é a série The Affair, que conta o caso de uma traição conjugal alternando a narrativa entre as visões de quatro pessoas, pertencentes aos dois casais envolvidos. A proposta é a de explorar o quanto cada um dos amantes pode ter construído sua própria versão dos fatos – e, por isso mesmo, é praticamente impossível pensar em um conceito de verdade.
Mas na trama de Anatomia de uma Queda, há um fato incontestável: a morte de Samuel não é uma questão de opinião. E o que teria de fato ocorrido com ele, neste caso específico, está apenas acessível por meio dos filtros subjetivos da memória contaminados pela forte dor emocional. Logo se descobre que Samuel, por razões obscuras, gravava as brigas do casal, e isso tudo passa a ser levado ao julgamento de Sandra para que os advogados se digladiem em torno do que teria ocorrido.
A princípio, este parece ser o princípio do Direito: o de conseguir fazer uma versão de um fato parecer mais sustentável do que outra. Não é a verdade que é debatida, lembra Vincent (Swann Arlaud), o advogado de defesa de Sandra, que claramente é apaixonado por ela. Seus sentimentos, portanto, também podem estar interferindo na possível resolução do caso.
Uma anatomia das relações parentais e da culpa
(Fonte: IMDB)Fonte: IMDB
Mas há outro elemento importantíssimo que surge na trama de Anatomia de uma Queda: a presença do filho Daniel, um menino que tem uma deficiência severa por conta de um acidente que, supostamente, envolve certa negligência do pai.
O “acidente” aparece como fratura irreparável nesta relação familiar: como lembra Sandra em alguns momentos, depois que ele ocorreu, nada mais permaneceu o mesmo.
Culpa e expiação transitam o tempo todo na história desse casal. Daniel se culpa da deficiência do filho, ao mesmo tempo em que culpa Sandra pela vida que leva e pelo rumo que as coisas tomaram.
Já Sandra sente o peso da cobrança do marido por conta de seu fracasso profissional, já que ele a acusa de ser o principal responsável pela criação do filho e de ter roubado ideias suas. Por óbvio, o filme arrebata a plateia porque todas essas situações são mais comuns do que pode parecer.
O caldo engrossa ainda mais quando, no julgamento, trechos dos livros de Sandra são lidos como pistas sobre seus reais sentimentos, e passam a ser expostos pelo promotor como possível prova de que ela poderia ser uma assassina.
Fato e ficção se misturam de forma complexa, com uma limitação terrível: a versão de Samuel só pode ser capturada em fragmentos, por meio de fontes nebulosas, como o depoimento de seu terapeuta.
É tudo extremamente desafiador, e Anatomia de uma Queda, de forma corajosa, não se presta a oferecer respostas definitivas ao espectador. Prefere convocá-lo a tirar suas próprias conclusões. Por tudo isso, é justo que dizer que estamos diante de um dos melhores filmes do ano – certamente merecedor do maior reconhecimento do Oscar.