O presidente Vladimir Putin foi reeleito com quase 90% dos votos na Rússia, chegando perto da marca do seu amigo Bashar al-Assad, o ditador sírio que ele salvou de ser derrubado com uma intervenção na guerra civil do país árabe há sete anos, dono de 95% num pleito farsesco em 2021.
Na visão do Ocidente liderado pelos Estados Unidos, a proximidade dos personagens e a inexistência de oposição real na Rússia, evidenciada nos atos silenciosos contra o pleito, tornam Putin um Assad com armas nucleares. É reducionismo e, claro, hipocrisia: ditaduras árabes amigas de Washington, como a Arábia Saudita, passam quase incólumes de críticas.
Isso dito, a complexidade da sociedade russa e de seus processos políticos podem não lhe garantir o selo de democracia ocidental, o que só fingiu ser numa década desastrosa para a população nos anos 1990, mas também não o coloca no patamar de um Assad. Além disso, nada garante que o país queira estar na Europa, uma tensão histórica na Rússia.
Os méritos desse cenário são discutíveis, mas ele garante que Putin consiga ser ao mesmo tempo herói dos populistas de direita que estão em franca reorganização à espera de uma eventual de Donald Trump à Casa Branca e da esquerda brasileira, amante de tudo o que soe antiamericano.
Dessa salada foram e são comensais felizes tanto Jair Bolsonaro (PL) quanto Luiz Inácio Lula da Silva (PT), neste particular seguidores da cartilha histórica do Itamaraty.
Como não é o principal parceiro comercial de mais de 120 países e retomou o uso da força nas relações internacionais, o governo da Rússia não recebe a mesma complacência ocidental dedicada China de Xi Jinping, um mui opaco homem forte e aliado de Putin.
Isso ocorria de certa forma na Europa, mas como a guerra parou às portas do continente, a dependência energética foi reduzida dentro do possível, gerando um problema ainda maior do que as sanções para os russos: chineses, indianos e até brasileiros querem comprar seus hidrocarbonetos com descontos generosos.
Com a mudança de ventos mundiais, favorecendo uma reforma da onda conservadora surfada por Trump e outros a partir de 2016, a reeleição de Putin é um marco simbólico.
Sua insistência em eleições e plebiscitos é traço comum com o chavismo admirado por Lula. Não por acaso, a Venezuela ainda é a principal parceira do Kremlin na América Latina. Mas não se trata meramente de cinismo: a legitimidade, ainda que por vias tortas, é peça central do acordo político em vigor na Rússia.
Nele, como um czar, Putin gerencia popularidade. Ela o justifica ante uma elite cada vez mais enfraquecida, com os eventuais curtos-circuitos, como o motim do Grupo Wagner. Mesmo ali, à maneira do que ocorria no império, o foco era uma briga faccional.
O presidente está mais forte do que há um ano, não menos pelos sucessos relativos na Ucrânia e os fracassos objetivos de Kiev em empolgar o Ocidente.
Assim como a adesão da Finlândia e da Suécia ao clube militar da Otan foi uma derrota estratégica de Putin, o russo segue mostrando o limite decorrente da incompreensão ocidental da Rússia.
Há dois anos, era dado como certo que as sanções matariam a economia russa, levando a elite ou quiçá o povo a sublevarem-se contra Putin. Depois, o fracasso em tomar Kiev era uma antevisão do mesmo destino, que seria consolidado com o apoio ocidental crescente a Volodimir Zelenski e provado quando os mercenários de Ievguêni Prigojin fizeram sua marcha insensata.
Nada disso ocorreu, o que não significa que os fatos tiveram impacto nulo. Só que, até aqui, a capacidade adaptativa do sistema foi eficaz para reverter expectativas no curto e médio prazo. Cria de um país que saltou de trauma em trauma, Putin sabe que a ideia de estabilidade, mesmo com a perda de seus jovens e a ocasional refinaria em chamas, é central.
A real popularidade do presidente, aferida em pesquisas independentes, reflete desta forma mais do que um suposto caráter bovino de seu povo. Tudo indica que a Ucrânia terá um mau bocado pela frente até o mundo saber quem será o próximo presidente americano, e que o resto é assunto para marqueteiros por ora.