Maior conflito militar em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial, a invasão russa da Ucrânia completou dois anos neste sábado (24) trazendo um arrazoado de novidades para estrategistas em defesa e vendedores de armas mundo afora.
A Folha conversou com analistas ocidentais, ucranianos e russos, e teve acesso a um estudo inédito que circula na comunidade acadêmica ligada ao Ministério da Defesa em Moscou, traçando a seguir um rápido panorama do legado militar da Guerra da Ucrânia até aqui.
AMBOS OS LADOS PUDERAM VENCER
Uma das conclusões mais consensuais é que Vladimir Putin e Volodimir Zelenski estiveram perto de vencer, no sentido de impor um xeque-mate militar que obrigaria o outro lado a conversar.
A Rússia repetiu de certa forma a chamada Operação Danúbio, quando o Pacto de Varsóvia esmagou o governo rebelde da então Tchecoslováquia em 1968. Uma força aerotransportada soviética tomou o aeroporto de Ruzyne, em Praga; em 2024, russos tomaram brevemente Hostomel, perto de Kiev.
Depois, colunas blindadas invadiram o país por diversas frentes, assim como Putin fez em três eixos principais na Ucrânia. A guerra do século 21 foi acrescida de ataques aéreos maciços em seu início, herança das campanhas americanas no golfo Pérsico.
A diferença estava na soberba dos russos agora. Enquanto os soviéticos invadiram um país pequeno de 14 milhões de habitantes com 250 mil soldados, o Kremlin usou talvez 200 mil para tomar uma grande nação com 44 milhões.
Ainda assim, quase cercaram Kiev e cumpriram a previsão americana de uma queda em 72 horas da capital. Só que foram travados por artilharia, poucas forças e uma desorganização logística que expôs seus blindados a fogo portátil. Menos de um mês depois, foram embora.
Já Zelenski viveu outra realidade. No fim do primeiro ano da guerra, o moral de suas tropas estava alto, com a reconquista da cidade Kherson (sul) e de áreas ocupadas de Kharkiv (norte). Os russos ainda buscavam forças com uma mobilização e jogavam mercenários e condenados anistiados na frente.
“Esta foi a vez dos ucranianos de perder tempo, esperando o treinamento e a chegada de novos tanques ocidentais. Quando chegaram, em número baixo, já haviam perdido seis meses de 2023. Estávamos prontos para eles”, diz o estudo conduzido por dois especialistas russos ligados a empresas de defesa.
À falta do fator surpresa somou-se um erro tático que emulou o dos russos: em vez de atacar diretamente rumo à Crimeia, cortando a ligação estabelecida por Putin com a península anexada em 2014, os ucranianos dividiram seu esforço em três. Falharam, ao fim.
DRONES MUDARAM A GUERRA, MAS NÃO COMO SE PENSAVA
A guerra entre Azerbaijão e Armênia de 2020, vencida ao fim por Baku, assentou a fama dos drones turcos de ataque Bayraktar TB2 como “game changers”, armas que mudariam o panorama do jogo em campo. Não por acaso, havia dezenas deles comprados pela Ucrânia quando os russos chegaram.
Inicialmente, o filme se repetiu: pequenos aviões-robôs destruindo colunas blindadas inteiras. A morte do tanque de guerra foi dada como certa. Só que rapidamente os russos empregaram táticas de bloqueio eletromagnético e calibraram suas defesas antiaéreas, anulando tal cenário.
Mais importante, passaram a usar seus próprios drones. Os mais de 4.600 ataques registrados por Kiev tiveram muitas vezes como protagonistas os modelos iranianos Shahed-136, mas aí o papel é tático: como são mais fáceis de derrubar e baratos, são enviados em ondas para saturar a defesa aérea ucraniana.
A diferença, contudo, ficou nos modelos pequenos, de observação do campo de batalha e para o lançamento de pequenas cargas sobre soldados. “Não há um lugar invisível na guerra”, diz o soldado ucraniano Valeri, codinome Kong, que acabou de voltar do leste e descansa na casa de um amigo em Kiev.
No documento russo, a realidade é a mesma e mesmo o papel do tanque é relativizado. “Ao longo da história, o segredo sempre foi a linha do horizonte de fogo. Hoje, nenhum blindado consegue se esconder, é preciso se mover o tempo todo, o que nem sempre é possível. Em um ano, falaremos de novo na morte do tanque”, afirma o texto.
A Ucrânia parece de todo modo estar um passo à frente dos russos. Criou uma frota de drones aquáticos que se mostraram um terror para a Frota do Mar Negro de Putin e diversos modelos de longo alcance que, quando não atingem refinarias e campos de pouso, têm impacto psicológico dentro da Rússia. E criou um ramo militar especializado nos robôs.
A ARTILHARIA AINDA É SOBERANA
A queda da estratégica Avdiivka para os russos na semana passada, um marco da guerra, se deu na avaliação dos dois lados pela superioridade de Moscou no quesito artilharia: eram 2.000 tiros dados pelos ucranianos todos os dias, contra 10 mil das forças de Putin.
Este é um dos dramas atuais da guerra, com o recuo do apoio ocidental. O soldado Kong conta que sua unidade trocou o uso de obuseiros autopropulsados 2S7 Pion soviéticos, de 203 mm, por sofisticados PzH 2000 alemães, que usam o padrão Otan de munição de 155 mm.
“O pessoal está com quase nada para disparar”, afirmou. Os EUA forneceram 2 milhões de obuses para esses canhões e outros, como os americanos M777 —198 dos quais foram doados até aqui. A quantidade é vital, mas fatores tecnológicos falam alto.
Nesse sentido, o emprego de lançadores de mísseis de precisão HIMARS americanos, 39 dos quais foram doados, fizeram muita diferença: foi a destruição das pontes usadas pelos russos no rio Dnipro que permitiu obrigar a retirada deles da capital homônima de Kherson, em 2022.
Mísseis de longa distância, área em que os russos se impõem, seguem sendo instrumentos vitais para a degradação de linhas de suprimento, infraestrutura e moral na Ucrânia. Mas por ora, diferentemente da doutrina americana mais recente, o velho canhão (e suas variantes modernas) ainda fala mais alto.