A cautela adotada pelo Itamaraty, fazendo par de forma menos crítica aos Estados Unidos na demanda por transparência dos resultados eleitorais da Venezuela, coloca à prova a dificuldade atávica do presidente Lula (PT) de criticar aliados na esquerda mundial —mesmo sendo eles ditadores.
Assim, o petista ganha tempo com a nota em que evita congratular Nicolás Maduro por sua farsesca vitória anunciada no pleito presidencial de domingo (29).
Como ninguém espera que a Comissão Eleitoral venezuelana apresente qualquer coisa que não seja o resultado manipulado para dar a impressão de uma vitória suada ao ditador, a posição brasileira será testada novamente.
Pelo histórico de Lula, parece difícil imaginar o petista chamando Maduro de ilegítimo. Ao longo de anos, afinal, o presidente brasileiro sempre celebrou o dito “excesso de democracia” do chavismo, confundindo plebiscitos direcionados a validar o regime com expressão popular autêntica.
Por outro lado, se partir para a pressão, ainda que comedida, Lula terá espaço para provar que aprendeu algo na política externa, campo em que sempre se vangloriou nos dois primeiros mandatos no Planalto, mas que em sua terceira encarnação tem apresentado resultados mistos, para ser gentil.
A diferença atual é que, para a surpresa de ninguém, Maduro engambelou Lula de forma desassombrada. Após reintegrar o ditador ao papel de chefe de Estado respeitável, com uma visita a Brasília no ano passado, o governo brasileiro liderou com o dos EUA uma tentativa de domesticá-lo com o Acordo de Barbados.
O comportamento do ditador desde então, com a perspectiva de ver alguma oxigenação de sua economia sem sanções petrolíferas americanas, foi de desprezo. Maduro amordaçou a oposição com quem sentou à mesa, prendeu seus candidatos e, de quebra, achou por bem decretar que dois terços da vizinha Guiana são seus.
Maduro introduziu esperteza ao banditismo político que caracteriza sua gestão desde que transformou a autocrática Venezuela numa ditadura de fato, quando substituiu o Legislativo dominado pela oposição por uma Assembleia Constituinte farsesca, em 2017.
Maduro não é, claro, Hugo Chávez, que trabalhava com líderes de diversas colorações, mas o que parece importar a Lula é sua credencial ideológica, caríssima à base do petista. Isolado no continente, mesmo ante esquerdistas de nova geração como o chileno Gabriel Boric, restaram ao ditador Lula, Cuba, Nicarágua, além de patronos como Vladimir Putin e Xi Jinping.
Se o corte de relações da era Jair Bolsonaro (PL) foi fútil por não tratar do problema e ainda colocar o Brasil como linha auxiliar do então presidente Donald Trump, a situação atual era desanimadora.
O brasileiro sempre passou pano para ditaduras de esquerda, cortesia de seu DNA. Fosse a Venezuela uma Cuba, um problema exótico no Caribe para os americanos, o impacto seria apenas de imagem.
Mas cruzam a fronteira em Roraima, todos os dias, centenas de refugiados da ditadura do vizinho —imagine o cenário se houver uma guerra sobre o controle das riquezas de Essequibo, na Guiana.
É, portanto, um assunto do Brasil, para não falar de aspectos geopolíticos e econômicos evidentes, como a exploração do petróleo nas águas que circundam toda a região.
O Acordo de Barbados foi desenhado para chancelar essa ideia de uma nova abordagem, mas a leniência com que Maduro foi tratado colocou tudo em xeque.
O ditador ficou tão à vontade que até tripudiar de Lula pôde, no episódio em que mandou o petista “tomar chá de camomila” quando proferiu uma frase de mera preocupação com a absurda ameaça de Maduro sobre um banho de sangue caso perdesse o pleito.
As famosas “fontes de Planalto” correram à imprensa para dizer que Lula estava irritado, que o governo achava tudo aquilo inaceitável. Agora, caberá a Lula dar ou não aval à possibilidade de Maduro escalar sua tirania.
A argumentação padrão brasileira, de não interferir em assuntos internos de outros países e de colocar à frente o proveito potencial nas relações entre Estados, não caberá desta vez. O que ocorre na Venezuela é sim de interesse brasileiro, e há prejuízo reputacional por ter se deixado enganar, voluntariamente ou não, pela pantomima eleitoral de Maduro.
O que for decidido à frente sobre o pleito venezuelano terá repercussão sobre todo o restante da gestão Lula no campo internacional. É um risco, mas também uma oportunidade.