Ao dizer ao povo americano que fica, Joseph Robinette Biden Jr., 81, insiste na jogada mais arriscada de suas cinco décadas de vida pública. O prognóstico não parece bom, e a agonia demonstrada pelo Partido Democrata será prolongada, salvo reviravoltas.
O presidente lutou para mostrar-se no domínio de suas faculdades, encerrando três dias de exercício do papel de líder do Ocidente, na cúpula da Otan em Washington.
Noves fora ter chamado Volodimir Zelenski de Vladimir Putin no evento, algo inofensivo em outros tempos, ao criar expectativa acerca do destino de sua postulação à reeleição ao desempenho em uma entrevista coletiva, mostrou ser dono de uma empáfia algo inocente.
Supôs que o peso do cargo e o feito de ter livrado os Estados Unidos de Donald Trump em 2020 bastariam para fazer cessar a onda que se formou após a debacle no debate contra o antecessor.
Que falar de forma algo mais firme, como fez apesar de pigarrear, repetir o escorregão Putin-Zelenski com sua vice e titubear várias vezes, resolveria os problemas. Que o evidente domínio demonstrado sobre temas de política externa e o bom humor suplantaria as gafes.
Nada disso deverá funcionar, dado o tema real da entrevista: a dúvida sobre si, falando sobre sua saúde neurológica, ainda que sob um questionamento algo envergonhado dos repórteres. Mas quando quase toda a mídia liberal americana pede a cabeça de um presidente democrata, algo deu muito errado.
Por evidente, pode ao fim dar certo. Trump segue sendo uma figura detestável para um contingente importante de eleitores, particularmente indecisos, ainda que a insistência dos “spin doctors” da Casa Branca sobre isso pareça mais voluntarismo do que certeza tática.
A permanência de Biden passa pelos ritos da política: ele já está escolhido pelos democratas, faltando a ratificação da candidatura em agosto. Apenas morte, incapacidade ou renúncia o tiram do páreo por força, e parece claro que o Comitê Nacional Democrata não irá mover uma moção questionando a cognição presidencial.
O episódio todo remete à fossilização associada à resistência em delegar poderes ou preparar sucessores. É um mal que, claro, não afeta apenas o Ocidente —vide a autocracia de Vladimir Putin na Rússia ou a personalização da ditadura chinesa em Xi Jinping.
Mas justamente por oferecer a alternância é que a democracia, como dizia Winston Churchill, constitui pior forma de governo, à exceção das restantes. Mesmo com as distorções de um sistema político plutocrático e montado sobre o algo exótico Colégio Eleitoral, os EUA poderiam ter feito melhor.
Orbitando o casal Clinton, o Partido Democrata tolheu a renovação. Desnecessário dizer qual líder eleito para barrar um populista mais ao sul das Américas deveria observar com atenção o processo americano. Por óbvio, o Brasil de Lula (PT) tem condições objetivas bastante diferentes das dos EUA de Biden, e o presidente também, mas os paralelos se impõem.
Tal calcificação ocorria com os republicanos até irromper Trump, em 2016. Foram quatro anos de turbulência e desastres que geraram outra dependência: saiu a família Bush e entrou a mitocracia trumpista, que deu tom para seus seguidores, como o brasileiro Jair Bolsonaro.
A política tradicional conseguiu, em grande medida, barrar a onda populista da metade dos anos 2010. A vaga está ressurgindo e deixando atônitos os defensores da estabilidade.
A imagem de um Biden abasbacado no debate remetia sim à sua capacidade, mas também ao estupefato ante a avalanche de mentiras e mistificações articuladas à sua frente. Essa qualidade de comunicação, por deletéria que seja, virou monopólio populista.
Não por acaso, quando a onda evidenciada nas eleições parlamentares da União Europeia encontrou um recife no pleito francês de domingo (7), a resistência não foi capitaneada por Emmanuel Macron, mas sim por uma liderança extremista de esquerda.
É um conto inconcluso, ainda. Assim como é o que se passa em Washington, após duas semanas devastadoras para a democracia americana.