Os repelentes, que se tornaram escassos em abril, já voltaram às prateleiras da Argentina, e os números da dengue enfim estão em diminuindo. Os paraguaios celebram quedas semelhantes nos casos da doença, e o Brasil avança, em passos lentos, na vacinação. Mas a gravidade do cenário já é histórica.
O surto de dengue nas Américas em apenas um semestre deste 2024 foi recorde: o maior dos últimos 40 anos, segundo os dados mais atuais da Opas, a Organização Pan-Americana da Saúde. Ao todo, este ano já se aproxima de 10 milhões de casos dessa arbovirose.
É praticamente o dobro dos casos registrados no continente ao longo de todo 2023, que já havia sido recorde desde ao menos 1980, quando a Opas começou a compilar essas informações regionais. Um conjunto de fatores que tem a emergência climática na ponta de lança faz o cenário ser preocupante a curto e também a longo prazo.
É na América do Sul que estão concentrados os maiores focos dessa doença, com destaque para o departamento ultramarino da Guiana Francesa, líder nessa porção: são mais de 4.600 casos a cada 100 mil habitantes, a maior taxa. Na sequência estão Paraguai (4.000/100 mil), Brasil (3.700), Guiana (2.100), Argentina (1.100) e Peru (720).
É um misto de reflexo dos dramas sociais dessa porção das Américas com um 2024 acompanhado de condições extremas, diz à reportagem o cubano Jose Luis San Martin, assessor regional da Opas para dengue.
“Os mosquitos [Aedes aegypti] estão diretamente relacionados com a vida urbana e doméstica. E nesta região há, cada vez mais, altos níveis de concentração populacional e de bolsões de pobreza, com estruturas precárias”, explica ele. “As condições ambientais estão criadas.”
Os mosquitos estão diretamente relacionados com a vida urbana e doméstica. E nesta região há, cada vez mais, altos níveis de concentração populacional e de bolsões de pobreza, com estruturas precárias
Mas há também o atípico 2024 marcado pelo fenômeno El Niño e por ondas de calor cada vez mais frequentes, fruto do aquecimento global. “O El Niño traz secas intensas, quando as cidades têm de armazenar mais água e, por outro lado, também enormes chuvas”, dois cenários perfeitos para criadouros de mosquitos, diz o especialista.
“Mais: saímos de uma pandemia global de Covid, quando toda a atividade de controle contra o Aedes naturalmente diminuiu”, segue. “Sem contar o calor frequente, já que o ciclo de vida do mosquito é favorecido em todas as partes pelas altas temperaturas.”
Com um cenário tão adverso para a saúde pública, mas um verdadeiro parque de diversões para o Aedes, diversos países dessa região foram desafiados pelo pico de casos da doença, que começa paulatinamente a a arrefecer à medida que em alguns lugares caem as temperaturas.
Na Guiana Francesa as autoridades alertam que as ondas de calor com umidade cada vez maior na região amazônica —compartilhada com o Brasil— e principalmente no litoral, formado por uma orla com pântanos, mangues e lodaçais, levaram à explosão de casos. Neste ano houve aumento de 157% dos casos de dengue em relação a 2023 e de 225% se a comparação for a média dos últimos cinco anos.
Na última semana, Paraguai e Argentina anunciaram um refluxo nos casos. No caso dos argentinos, são nove semanas com quedas consecutivas nos números da doença. Foi uma média recente de 252 novos casos semanais ante mais de 60 mil nas semanas de pico.
Ao todo, as Américas registraram neste primeiro semestre cerca de 4.800 mortes em consequência da doença, o dobro do registrado em todo o ano anterior (2.423).
Por questões ligadas ao volume populacional, é o Brasil que concentra a maior parte dos óbitos: ao menos 4.170 até esta quarta-feira (26). Mas está longe de ser o mais com maior letalidade, o que fica a cargo do caribenho Porto Rico, com morte de 0,14% dos infectados. No Brasil essa proporção foi de 0,04%.
Diante desse complicado cenário, foi Brasília que deu a dianteira ao incorporar a vacina contra a dengue na rede pública de saúde. Para diversos outros países da região, como Argentina e Paraguai, essa é uma opção por ora descartada no controle do surto.
Em uma recente reunião de ministros de Saúde do Mercosul (formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), o argentino Mario Russo, chefe da pasta na gestão de Javier Milei, disse que “se a erradicação do vetor não for objetivo central, será levada uma mensagem confusa para a população de que a vacina pode solucionar o problema”.
Sua homóloga paraguaia foi em linha semelhante e recentemente disse que o governo que representa “obviamente não é contra aplicar a vacina”. “Mas precisamos de um compromisso da população para destruir os criadouros de mosquitos, e hoje não temos isso”, disse María Teresa Barán Wasilchuk.
O cubano Jose Luis San Martin, da Opas, afirma que a vacina atual existente contra a dengue “não é uma solução para esse problema epidêmico” e que, de fato, a prioridade deve ser acabar com os criadouros do Aedes.
“Tampouco podemos colocar a responsabilidade nas costas da comunidade, mas é preciso entender que, se não combatermos os focos de dengue, o Aedes aegypti se torna um bichinho de estimação: o criamos e o alimentamos, com nosso próprio sangue.”