O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) desembarcou em Berlim neste domingo (3) na primeira viagem oficial de um chefe de Estado brasileiro à Alemanha desde 2012.
Além de marcar uma nova etapa na retomada das relações entre os dois países, a viagem vai reunir figuras de partidos que há décadas mantêm relações estreitas: o PT (Partido dos Trabalhadores) de Lula e o SPD (Partido Social-Democrata, na sigla em alemão) do primeiro-ministro, Olaf Scholz, e do presidente, Frank-Walter Steinmeier.
Ambas as legendas de centro-esquerda são intimamente ligadas a movimentos sindicais ao longo de suas trajetórias, e o PT e o SPD mantêm laços de cooperação política que remontam à década de 1980.
Primórdios: sindicalismo e encontro de Lula com o premiê Helmut Schmidt
Os primeiros laços entre membros do PT e do SPD ocorreram antes mesmo da fundação do partido brasileiro.
Em 1979, durante o período em liderou greves no ABC, Lula recebeu diversas manifestações de solidariedade do influente sindicato metalúrgico alemão IG Metall, cujos líderes são tradicionalmente ligados ao SPD.
No primeiro volume da biografia “Lula” (Cia. das Letras), o jornalista Fernando Morais aponta que nos anos 1970, o banqueiro Herbert Levy, então dono do jornal Gazeta Mercantil, acreditava que Lula era um “agente do sindicalismo alemão”.
As relações de Lula com o IG Metall chegaram a ser abordadas num relatório do Cenimar, órgão de repressão ligado à Marinha do Brasil, que destacou doações do sindicato a um fundo de greve do ABC.
Ainda em 1979, em abril, o social-democrata Helmut Schmidt, que foi primeiro-ministro da Alemanha entre 1974 e 1982, se reuniu com Lula no Brasil em plena ditadura militar. O brasileiro havia sido afastado do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema após o regime intervir na organização.
Durante a sua viagem, Schmidt afirmou que as empresas alemãs que atuavam na América Latina teriam que reconhecer os sindicatos como parte de uma sociedade de mocrática.
Trinta anos depois, como presidente, durante uma viagem de Estado à Alemanha, Lula retribuiu a visita a Schmidt, então com quase 91 anos. “Me orgulho muito de ver um sindicalista como presidente do Brasil”, disse Schmidt na ocasião.
Em novembro de 2015, quando Schmidt morreu, aos 96 anos, Lula mais uma vez mencionou o encontro de 1979 em uma nota de pesar. “Ele fez questão de ter um encontro comigo em 1979, num momento em que eu estava sendo enquadrado pela lei de segurança nacional da ditadura militar. Serei eternamente grato por esse gesto grandioso. O mundo precisa de mais líderes como Helmut”, escreveu Lula.
Intercâmbio regular
Em 1985, a FES (Fundação Friedrich-Ebert), associada ao SPD, começou a atuar no Brasil, passando a cultivar laços estreitos com o PT e, posteriormente, com a Fundação Perseu Abramo, ligada ao partido brasileiro.
Desde então, a FES passou a organizar eventos tanto no Brasil quanto na Alemanha que reuniram petistas e social-democratas alemães.
Alguns desses encontros na Alemanha ocorreram em épocas que figuras do PT estavam em baixa, entre 2017 e 2020, no pós-impeachment de Dilma Rousefff, e no período em que Lula ainda tentava recuperar seus direitos políticos.
Isso fornecia uma vitrine na Europa para que os dois ex-presidentes criticassem a situação política e judiciária do Brasil. Nas ocasiões, Lula e Dilma se reuniram com várias figuras do SPD. Em 2020, na sua segunda viagem internacional após deixar a prisão, Lula foi a Berlim e seu reuniu com o então colíder do SPD, Norbert Walter-Borjans.
Em 2005, durante o aniversário de 80 anos da FES, Lula escreveu que a história do PT e da CUT (Central Única dos Trabalhadores) estava estreitamente ligada ao papel da fundação no Brasil e destacou que a organização sempre esteve ao lado do PT “nos maus momentos” demonstrando “solidariedade internacional”.
Era Schröder: Sintonia em temas internacionais
Em 2003, após a posse de Lula, a Alemanha foi o destino da primeira visita oficial do novo presidente fora da América Latina. À época, ele foi recebido pelo então primeiro-ministro, Gerhard Schröder, e o presidente Johannes Rau, ambos filiados ao SPD.
Rau, assim como Schmidt, também conhecia Lula dos tempos de sindicalismo.
Durante a era em que estiveram paralelamente no poder (2003-2005), Schröder e Lula mantiveram sintonia em diversos temas internacionais, alguns deles ainda pendentes décadas depois, como a reforma de organismos internacionais e as negociações do acordo comercial entre o Mercosul e União Europeia (UE).
Os dois líderes se engajaram especialmente numa demanda mútua pela reforma do Conselho de Segurança da ONU, buscando incluir seus respectivos países no órgão. Lula e Schröder também se opuseram publicamente à época aos planos dos Estados Unidos de invadir o Iraque.
Solidariedade no período da Lava Jato
Durante o período em que Lula e o PT foram alvos da operação Lava Jato, políticos do SPD manifestaram repetidamente solidariedade ao então ex-presidente e ao partido.
Meses antes da prisão de Lula, em janeiro de 2018, a integrante do SPD e ex-ministra da Justiça do governo Schröder, Herta Däubler-Gmelin, publicou um texto criticando a conduta do então juiz Sergio Moro e o processo contra Lula —um ano e meio antes das revelações da “Vaza Jato”.
“Durante o julgamento de Lula, o Judiciário do Brasil ignorou repetidamente princípios fundamentais como a imparcialidade judicial e o direito a um julgamento justo. As audiências revelam muitas vezes violações processuais graves em investigações e julgamentos, levantando suspeitas de que os procedimentos judiciais estão sendo utilizados abusivamente para fins políticos. Seus motivos são claros: Moro precisa encobrir a flagrante falta de provas contra Lula”, escreveu Däubler-Gmelin.
Ainda durante a derrocada do governo Dilma Rousseff, em 2016, alguns deputados do SPD criticaram o processo de impeachment contra a então presidente.
“Apesar das intensas investigações, no entanto, não há provas confiáveis de que Dilma Rousseff ou o seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, estivessem envolvidos no escândalo da Petrobras”, apontou à época uma nota divulgada por deputados do partido, entre eles Niels Annen, que hoje ocupa o posto de secretário de Estado parlamentar junto ao Ministério Federal para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento do governo Scholz.
Após a prisão de Lula, em abril de 2018, membros do SPD também voltaram a prestar solidariedade. A deputada social-democrata Yasmin Fahimi chegou a organizar entre 2018 e 2019 uma campanha na Alemanha para pressionar pela soltura do petista.
O gesto mais notório de solidariedade envolveu uma visita do ex-líder do SPD e ex-presidente do Parlamento Europeu Martin Schulz a Lula em 2018, quando o petista cumpria pena na sede da Polícia Federal em Curitiba. Na ocasião, Schulz ocupava o posto de presidente da FES na Alemanha.
Em Curitiba, Schulz disse à época que sua intenção era transmitir a solidariedade dos social-democratas europeus e que havia realizado “a viagem a pedido de Andrea Nahles”, à época líder do SPD. Ele também afirmou que havia discutido a visita com o então ministro alemão do Exterior, Heiko Maas, outro filiado ao SPD.
Entusiasmo com retorno de Lula
Após Lula recuperar seus direitos políticos em 2021, membros do SPD não disfarçaram que simpatizavam com uma nova candidatura do petista à Presidência.
À época, o SPD fazia parte de uma coalizão de governo com os democratas-cristãos de Angela Merkel, e as relações entre Alemanha e Brasil estavam abaladas pelo isolacionismo e desmontes de políticas ambientais de Jair Bolsonaro.
Em 2021, em uma nova visita a Berlim, Lula se reuniu com várias figuras do SPD, incluindo Olaf Scholz, que poucas semanas antes havia vencido a eleição alemã e ainda costurava a formação de um novo governo para suceder Merkel.
O gesto, somado a visitas que Lula fez à França e Espanha, foi encarado como um triunfo político para o petista e marcou um contraste com o isolamento internacional de Bolsonaro, que nunca fez uma visita oficial à Alemanha.
“Estou muito satisfeito com nossas boas discussões e aguardo com expectativa continuar nosso diálogo”, escreveu Scholz após o encontro. Lula e o PT também haviam parabenizado publicamente o SPD pela vitória nas eleições.
Na mesma viagem, Lula ainda voltou a se reunir com Martin Schulz e se referiu ao social-democrata como “um companheiro das horas mais difíceis”.
“Lula é a esperança do Brasil para o fim da política de divisão e provocação de Jair Bolsonaro”, escreveu Schulz no Twitter (hoje X) sobre o encontro. “Boa sorte nos próximos meses!”
Em agosto de 2022, semanas antes da eleição presidencial no Brasil, o colíder do SPD, Lars Klingbeil, esteve no Brasil e explicitou a preferência de seu partido por uma vitória de Lula. “Todos na Alemanha temos uma grande esperança de que o próximo presidente seja novamente Lula”, disse Klingbeil à DW Brasil na véspera de um encontro com o candidato em São Paulo.
Após a vitória de Lula no segundo turno, Scholz e o presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, rapidamente parabenizaram o petista.
Steinmeier participou da posse de Lula, em janeiro. “É bom saber que o Brasil está de volta”, disse na ocasião. Ele e Lula já haviam travado diversos encontros no passado, inclusive quando ambos não ocupavam cargos em governos, como em um debate em 2012 em Berlim organizado pela FES.
No mesmo mês de janeiro, Scholz realizou uma visita de Estado em Brasília, a primeira de um primeiro-ministro alemão em mais de sete anos. A visita de Lula a Berlim em dezembro vai marcar o quarto encontro entre os dois líderes em 2023. Eles também se encontraram às margens da cúpula do G7 e da Assembleia-Geral da ONU.
‘Partidos irmãos’
Em junho de 2023, tanto o PT quanto o SPD lembraram os antigos laços ao firmarem um acordo de cooperação política. Assinado pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e o copresidente do SPD, Lars Klingbeil, o documento se refere às duas legendas como “partidos irmãos” e menciona o histórico de solidariedade e atuação conjunta que remonta à década de 1980.
O novo protocolo prevê reuniões de alto nível anuais entre os líderes dos partidos para discutir cooperação em temas como “luta contra a extrema direita”, “proteção do clima”, defesa do multilateralismo e reforma de organismos multilaterais.