Cerca de 50 profissionais brasileiros, por meio da Associação dos Advogados Estrangeiros em Portugal, entraram com ações em tribunais lusitanos contra a OAP (Ordem dos Advogados Portugueses) nos últimos dias.
Os processos contestam o fim da reciprocidade para o exercício da advocacia entre os dois países. O encerramento da parceria foi decidido de forma unilateral pelo conselho geral da entidade portuguesa em julho.
Presente nos estatutos da entidade portuguesa desde 2015, o pacto de reciprocidade garante que advogados brasileiros não precisem revalidar seus diplomas nem fazer provas adicionais para atuar em território luso, sendo suficiente a inscrição válida e em atividade na Ordem dos Advogados do Brasil.
Os brasileiros argumentam que a reciprocidade deveria seguir válida, uma vez que a decisão do conselho geral não teria seguido todos os procedimentos necessários para que o acordo deixasse de ser válido.
“A deliberação deste órgão da OAP viola de forma flagrante direitos, liberdades e garantias constitucionalmente previstos, bem como o tratado de Amizade, Cooperação e Consulta celebrado entre Brasil e Portugal [em vigor desde o ano 2000]”, diz a Associação dos Advogados Estrangeiros em Portugal.
A entidade destaca que a reciprocidade com o Brasil para o exercício da advocacia foi consolidada no país em dois artigos no estatuto da OAP. Como o documento permanece inalterado, uma mera deliberação do conselho geral não seria suficiente para invalidar o mecanismo.
Na última semana, o presidente de Portugal vetou alterações ao estatuto da Ordem, mas alegando outras razões não ligadas ao tema da reciprocidade, como a redução do tempo obrigatório de estágio. Oficialmente, portanto, o texto segue inalterado e, com isso, o acordo permaneceria em vigor.
A Folha entrou em contato com a Ordem dos Advogados Portugueses, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
As ações contra a entidade portuguesa são movidas por advogados brasileiros que deram entrada nos pedidos de inscrição profissional em Portugal após o anúncio do fim do acordo. Em meio ao imbróglio jurídico, a seção do Porto da Ordem lusa continuou recebendo as inscrições, mas sem aceitar o pagamento de taxas, uma vez que o cenário era indefinido.
Nas últimas semanas, com a notificação de que os pedidos de inscrição começariam a ser indeferidos, o grupo decidiu acionar as vias legais.
Uma advogada paulistana, que pediu para não ser identificada por temor de represálias, contou que precisou gastar quase todas as economias para ir com urgência a Portugal e fazer o pedido de reciprocidade. Ela diz que já tinha planos de se mudar para o país europeu e que havia começado a reunir a papelada necessária, mas queixou-se da surpresa com o anúncio do fim unilateral do acordo.
A decisão da OAP foi publicada no site da instituição em 4 de julho, com a indicação de que entraria em vigor já no dia seguinte. Ainda que, por enquanto, tudo permaneça igual para profissionais do Brasil que já estivessem devidamente inscritos na entidade portuguesa, o clima é de apreensão.
Vice-presidente da Associação dos Advogados Estrangeiros em Portugal, a brasileira Kíssila Valle teme que haja outras mudanças dirigidas aos profissionais que já atuam no país. “As pessoas estão preocupadas. Muita gente fez investimentos, mudou de país com a família”, diz. “Não sabemos o que vai acontecer. Existe o temor de que, se a alteração do estatuto for para a frente, possa haver represálias aos advogados brasileiros que já estão inscritos, como alguma forma de empecilho para atuar.”
Sem o acordo, os brasileiros estarão sujeitos aos mesmos trâmites que se aplicam a todos os advogados estrangeiros de fora da União Europeia.
Entre a comunidade brasileira, muitos dizem considerar que a decisão foi uma tentativa de reserva de mercado para os profissionais lusos. Cerca de 9,3% dos advogados registrados no país europeu são do Brasil. No universo dos quase 34 mil profissionais inscritos na OAP, em torno de 3.170 são brasileiros.
“Em um mundo globalizado, em um país que faz parte da União Europeia, querer restringir o mercado desse jeito tornaria a advocacia portuguesa em uma advocacia de aldeia, de província”, diz Valle.
Oficialmente, a OAP alega que há “diferença notória na prática jurídica em Portugal e no Brasil”, citando ainda o que seriam “sérios problemas” de adaptação dos profissionais brasileiros.
“Existem sérias e notórias dificuldades na adaptação dos advogados brasileiros ao regime jurídico português, à legislação substantiva e processual e às plataformas jurídicas, o que coloca em risco direitos, liberdades e garantias dos cidadãos portugueses e dos brasileiros.”
Em nota, divulgada no anúncio do rompimento do acordo, o presidente da OAB, Beto Simonetti, afirmou ter sido surpreendido com a decisão. Ele prometeu agir para salvaguardar os brasileiros. “A OAB tomará todas as medidas cabíveis para defender os direitos dos brasileiros aptos a advogar em Portugal ou que façam jus a benefícios decorrentes do convênio do qual a Ordem portuguesa está se retirando.
Simonetti também se disse contrário a “qualquer mudança que validasse textos imbuídos de discriminação e preconceito”. “A mentalidade colonial já foi derrotada e só encontra lugar nos livros de história, não mais no dia a dia das duas nações.”
Questionada pela reportagem sobre a situação atual das negociações com a Ordem portuguesa, a OAB não se manifestou.