Toda vez que o Uruguai é notícia, como neste fim de semana em que há eleições presidenciais, surgem os mais lindos elogios acompanhados de algumas desbaratadas explicações para tal (são bem formados porque são poucos, é fácil alfabetizar menos gente, além do medonho ‘tem mais vaca que gente, então é mais difícil de não ter briga’).
Nada é tão simples assim, e não é verdade que tenha sido uma sociedade livre de conflitos ao longo de sua história. Lutou para ser independente e mesmo para existir entre dois verdadeiros impérios, Brasil e Argentina. Tampouco nasceu moderno —basta notar que há pouco menos de cem anos os duelos a tiros saíram efetivamente da letra escrita.
O que o Uruguai teve de particular, e vale ressaltar em datas como esta, foram pessoas de imenso valor.
Comecemos com um um homem fenomenal, o grandalhão e inquieto —e de furor progressista, tal como contam seus amigos— José Batlle y Ordoñez (1856-1929).
Rico, de família europeia, poderia viver bem de qualquer lado do Atlântico, mas foi acometido pela febre de renovar seu país a todo custo. Foi duas vezes presidente, tendo tido também um pai presidente. Tinha um passado que o ajudava e era membro do Partido Colorado, mas nem por isso se fez um homem conservador: era extremamente progressista.
Hoje se diz entre ” blancos” (liberais) e “frente amplistas” (centro e centro-esquerda) que, no fundo, todos acabaram sendo batllistas. Viveu na França, de onde trouxe muito da arquitetura que queria ver no Uruguai: praças, parques e a onipresente rambla, que por sua estratégica posição democratizou Montevidéu. Instituiu a educação laica e mandou tirar os crucifixos das escolas. Mais, se apaixonou, e de modo recíproco, pela mulher do primo, casando-se com ela logo após a morte do parente. Tinha a convicção de que a mulher deveria escolher casar ou divorciar-se e fazer o que bem entendesse.
Suas reformas trabalhistas, ainda nos anos 1910, marcariam o Uruguai para sempre: as jornadas de oito horas, a aposentadoria por tempo ou invalidez, a ajuda e o reconhecimento dos filhos das mulheres solteiras. Buscou a igualdade não só de direitos, os salários eram os mesmos entre homens e mulheres.
Anos depois, outro uruguaio retrataria Montevidéu como poucos. Foi Mario Benedetti (1920-2009). Em seu “Montevideanos” expôs o cotidiano dos habitantes da cidade, por vezes taciturnos e cinzentos, mas que levavam uma vida de tristezas, alegrias, amores, intrigas e traições e mesmo tragédias de maneira discreta e sem perder a classe única. Como se não tivessem de compartilhar seus segredos com ninguém. Capta seu espírito, mas também o de sua época.
Talvez o mais discreto desses uruguaios notáveis tenha sido José Enrique Rodó (1871-1917), hoje mais conhecido por dar nome ao mais famoso parque da capital. Mas Rodó também é autor do essencial “Ariel”, onde toma o personagem Ariel, da “Tempestade”, de Shakespeare (que simboliza o espírito do ar, das artes, da sensibilidade), para representar os uruguaios. Outras interpretações sugeriram que, se a América é representada na obra shakesperiana, ela seria o voluptuoso Caliban, torpe e cheio de artimanhas. Para Rodó, a alma e a arte ocupavam o mais alto lugar na vida de seus compatriotas.
Não é por outra razão, devo admitir, que Rodó é o nome que escolhi para o caçula e mais terno dos meus gatos.
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