A agenda ideológica do governo de Javier Milei em órgãos multilaterais, evidenciada na cúpula do G20 no Rio de Janeiro, já era realidade no Mercosul, o bloco sul-americano no qual Brasil e Argentina são pedras angulares.
A encurralada diplomacia argentina vem tentando tirar de Buenos Aires o Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos (IPPDH), que faz parte do bloco, e reduzir seu tamanho e seus poderes, fundindo-o com o Instituto Social do Mercosul. O Brasil se opõe.
O debate é permeado de simbolismos. O IPPDH foi fundado em 2009 e desde 2015 tem sede em um dos locais de mais peso histórico da capital argentina, a “ex-Esma”, antiga Escola de Mecânica da Armada. Na época da ditadura (1976-1983), o espaço foi um centro de tortura e prisão de perseguidos políticos; depois, foi transformado em um espaço de memória, com um complexo de museus.
Nas palavras de uma das principais vozes de política externa no atual governo, com quem Milei dialoga com frequência e que fala à reportagem sob reserva, a ex-Esma teria se transformado em um espaço de militância peronista, a oposição ao governo.
Para interlocutores do Brasil, manter o IPPDH ali é uma forma de lembrar um passado compartilhado com Argentina, Uruguai e Paraguai: as ditaduras militares na América do Sul.
A Argentina já propôs enviar o IPPDH para Montevidéu e, mais recentemente, em outubro, para Assunção. Uruguai e Paraguai disseram que podem acompanhar a proposta argentina de fundir o instituto, mas que a princípio creem ser melhor manter cada um de forma independente. O Brasil se opôs taxativamente.
Os argentinos argumentam que o Instituto de Direitos Humanos não tem tido boa atuação. Interlocutores brasileiros afirmam, porém, que a atuação do órgão está aquém porque, nos últimos anos, foi negligenciado por outros governos —notadamente o de Jair Bolsonaro no Brasil. Dizem ainda que agora é um momento-chave para impulsioná-lo. A atual diretora do instituto é a brasileira Andressa Caldas.
Em dezembro passado, o Brasil quitou uma dívida de mais de R$ 5,7 milhões com o IPPDH herdada das gestões de Michel Temer (MDB) e Bolsonaro. Para 2024, o orçamento geral do instituto foi de quase R$ 5 milhões. O Brasil contribui com 27% do orçamento, e a Argentina, com 62%. Brasília já manifestou que poderia subir seus aportes para diminuir a contribuição necessária dos argentinos.
A atuação do governo Milei no Mercosul se espraia para outras agendas, também elas ligadas a pautas de direitos humanos. Nos termos de pessoas que acompanham as discussões, a diplomacia argentina tem apostado no imobilismo de debates.
Durante os últimos dias, uma série de reuniões online contou com representantes de todos os países-membros para debates sobre direitos humanos do Mercosul. Trata-se de um fórum de coordenação de políticas públicas. O protagonismo foi argentino.
Informações colhidas pela reportagem apontam que os argentinos se ausentaram da reunião sobre direitos LGBTQIA+. No debate sobre direitos de mulheres, bloquearam o termo “gênero”. Em reuniões sobre pessoas com deficiência, pediram que fosse amenizado a expressão “desastre climático”. Negaram-se a adotar passagens sobre direitos reprodutivos de mulheres com deficiência.
Na maioria dos casos, como o de racismo e xenofobia, a Argentina assinou como “ad referendum”. Isso quer dizer que não apoia o documento e irá debatê-lo internamente.
Na prática, bloqueia-se a aprovação do tema, já que o Mercosul só aprova resoluções por consenso —os temas voltarão a ser debatidos no próximo ciclo de reuniões. E é justamente a Argentina o próximo país a presidir rotativamente o Mercosul.
Com frequência os argentinos adendam um mesmo parágrafo em documentos para manifestar sua oposição. Em resumo, argumentam que preferem falar em vulnerabilidade, não em interseccionalidade, dando a entender que falar de gênero e raça, por exemplo, divide a sociedade.
Relatos apontam que os servidores argentinos pareciam temerosos e sem autonomia e que interrompiam o debate para dizer que teriam de falar com seus superiores, algo que em governos anteriores não acontecia.
Também apontam para uma participação específica que vem chamando a atenção: Úrsula Basset.Ela não estava inscrita como representante argentina para nenhuma dessas reuniões. Mas participava delas, nas palavras de interlocutores, subindo o tom. Advogada especializada em direito da família, ela se tornou uma espécie de consultora informal da chancelaria argentina, hoje palco de uma caça às bruxas.
A reportagem enviou mensagens e ligou para a advogada para consultá-la sobre esses e outros relatos, segundo os quais ela tem feito acusações falsas contra o IPPDH. No último ciclo de reuniões, Basset disse que o instituto teria modificado um documento após a Argentina se mostrar contrária a ele. O órgão negou.
Basset disse que não fala com jornalistas e que não responderia à reportagem.
O mesmo interlocutor de política externa próximo a Milei diz que há pouco tempo desconhecia Basset. Afirma, ainda, que a recente demissão da chanceler Diana Mondino se deveu, na verdade, ao avanço de um setor formado por Basset, pela irmã de Milei, Karina (secretária-geral da Presidência), e pelo assessor presidencial Santiago Caputo na chancelaria. A tríade atua como baluarte ideológico deste governo.
Oficialmente, a justificativa para a saída de Mondino foi um voto dado por seu ministério na ONU contra o embargo americano a Cuba. Milei elegeu Estados Unidos e Israel como seus aliados de primeira hora, e o retorno de Donald Trump à Casa Branca fez brilhar os olhos do argentino, que foi à Flórida e se tornou o primeiro presidente da América Latina a encontrar o republicano após ele ser eleito.
O retorno de Trump é lido como um fator que pode empoderar as decisões de política externa de Milei. O argentino disse que buscará um acordo de livre-comércio com Washington. Foi uma declaração que pegou a todos de surpresa, em especial por três motivos.
1) Não se sabe o apetite americano para isso; 2) Milei tem se aproximado também da China, a quem antes criticava mas agora entende que é sua segunda principal parceira comercial, depois do Brasil; 3) Os membros do Mercosul, em tese, não podem firmar acordos de livre-comércio por fora do bloco.
Em duas semanas, os membros do Mercosul se reúnem em Montevidéu para cúpula de chefes de Estado. Assessores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) indicam que ele irá. Após ignorar a última cúpula, em Assunção, Milei também irá. A Argentina assumirá a presidência rotativa do bloco no qual tem sido o principal ponto de conflito.