A retumbante vitória de Donald Trump nas eleições na semana passada não deveria ter surpreendido ninguém. O 45º e, agora, 47º presidente dos Estados Unidos surfou uma onda sem precedentes de antipatia a incumbentes que castigou nas urnas quase todos os partidos no poder ao redor do globo em 2024.
Na verdade, a vice-presidente, Kamala Harris, foi uma das incumbentes que melhor se saiu em uma eleição em um país rico neste ano, um testemunho de sua campanha disciplinada, da impopularidade histórica da candidatura de Trump e da liderança da economia dos EUA no cenário mundial.
Isso não foi, porém, suficiente diante da ampla frustração dos eleitores com a contínua alta dos preços causada pela inflação global pós-pandemia e pela imigração massiva. Um ambiente de informação hiper polarizado que divide os EUA em duas câmaras de eco partidárias tornou praticamente impossível para a campanha de Kamala lutar contra a corrente opositora.
Nenhum partido no poder na Casa Branca conseguiu se manter lá quando a aprovação de seu governante estava tão baixa e tantos americanos acreditavam que o país estava no caminho errado. Vista sob essa perspectiva, a derrota de Kamala era mais provável do que improvável.
O primeiro republicano a vencer no voto popular em 20 anos, com ganhos em quase todos os grupos demográficos e geografias, Trump assumirá o cargo não apenas com um mandato forte, mas também com provável controle unificado do Congresso e maioria conservadora na Suprema Corte.
Isso dará carta branca à nova administração para promulgar a abrangente agenda de políticas domésticas de Trump, reestruturar o governo federal de forma radical e reescrever as normas institucionais sem grande resistência em termos de freios e contrapesos independentes.
Mas se o retorno de Trump impactará profundamente os EUA, ele pode afetar ainda mais o resto do mundo.
Muitos esperam que a política externa americana no segundo mandato de Trump seja simplesmente uma repetição de seu primeiro mandato, marcado pela ausência de grandes conflitos (além da conclusão da mais longa guerra dos EUA no Afeganistão) e até mesmo por alguns sucessos notáveis, como a revitalização de um acordo de livre comércio na América do Norte, os Acordos de Abraão, uma divisão de custos mais justa entre os membros da Otan e novas e mais fortes alianças de segurança na Ásia.
Além disso, Trump com certeza ainda é a mesma pessoa que era há quatro anos, para o bem ou para o mal. Sua visão de mundo permanece inalterada, assim como sua ideia unilateral e transacional de “America first”, os EUA antes de tudo, para a política externa.
Mas outras coisas mudaram. Por um lado, enquanto o presidente eleito permanece pessoalmente desinteressado na administração governamental, sua segunda administração será composta por funcionários de alto escalão mais alinhados ideologicamente e experientes, prontos para implementar sua agenda desde o princípio.
Os funcionários de carreira que tantas vezes moderaram seus impulsos mais disruptivos ao longo de seu primeiro mandato foram embora, substituídos por funcionários menos experientes e mais leais. São eles que atuarão como conselheiros de política externa neste segundo mandato de Trump, mas estarão bem mais experientes do que naquela época.
Mais importante, o mundo se tornou mais perigoso desde a última vez que Trump foi presidente dos EUA. Os feitos do republicano ocorreram em um cenário de baixa histórica das taxas de juros e um contexto geopolítico no geral benigno.
Duas guerras regionais, intensificação da disputa com a China, caos generalizado ameaçado por atores desonestos e audaciosos como Rússia, Irã e Coreia do Norte, economia global lenta e tecnologias disruptivas como inteligência artificial IA) vão impor demandas inéditas à liderança de Trump.
As implicações de uma política externa “America First” imprevisível são muito mais arriscadas do que em 2016, e há uma probabilidade maior de resultados mais extremos. Embora Trump ainda possa conseguir algumas vitórias em política externa em virtude de seu estilo transacional e da influência que ele naturalmente exercer ao liderar a nação mais poderosa do mundo, o potencial para que as coisas saiam de controle hoje é muito maior.
O melhor exemplo disso é a China, em relação à qual Trump adotará uma postura muito mais dura —isso depois de a administração Biden conseguir estabilizar os laços com o país asiático.
Isso começará com um impulso para aumentar os impostos sobre as importações chinesas para lidar com o déficit comercial bilateral. Pequim enfrenta problemas econômicos graves e agirá com cautela para evitar crises desnecessárias. Dependendo de quão proibitivas forem as tarifas de Trump e da margem dos chineses para negociar em vez de retaliar, é possível que a escalada leve a um avanço. Mas o mais provável é que a abordagem combativa defendida pelo belicoso gabinete do presidente eleito e pelos republicanos no Congresso leve a um agravamento das tensões e a uma nova Guerra Fria que, em última instância, aumenta o risco de confronto militar direto.
No Oriente Médio, o presidente eleito tentará expandir seus emblemáticos Acordos de Abraão para incluir a Arábia Saudita enquanto dá carta branca a Israel para promover suas guerras da maneira como achar melhor, sem pressão para limitar o impacto humanitário ou o risco de escalada de suas ações.
De maneira mais preocupante, Trump apoiará —ou, pior, incentivará— um Binyamin Netanyahu já cheio de si cheio a lidar com a ameaça nuclear iraniana de uma vez por todas, arriscando a conflagração de uma guerra mais ampla e grandes problemas na distribuição mundial de combustíveis.
Em contraste, Trump prometeu encerrar a guerra na Ucrânia em “um dia” —e antes mesmo de ser empossado—, pressionando unilateralmente os presidentes ucraniano e russo, Volodimir Zelenski e Vladimir Putin, a aceitar um cessar-fogo que congele os enfrentamentos em sua configuração atual, usando a ajuda militar Kiev como uma alavanca sobre ambas as partes. Se eles aceitarão esses termos ou não, é uma questão em aberto.
Muito dependerá de como a Europa responderá. Estados-membros da Otan próximos à linha de frente da guerra –Polônia e os países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia) e nórdicos (Suécia, Finlândia, Noruega e Dinamarca)— veem a defesa da Ucrânia como uma questão existencial para sua própria segurança nacional e estariam dispostos a assumir os altos custos de protegê-la se os EUA desistirem.
Já outras nações europeias podem se deliciar com a possibilidade de um acordo, seja por razões ideológicas, como a Hungria, políticas, como a Itália, ou fiscais, como a Alemanha.
De um lado, assim, o segundo mandato de Trump poderia ser o evento responsável por finalmente unir a Europa e galvanizar uma resposta de segurança mais forte da União Europeia, consolidando-a e tornando-a “estrategicamente autônoma”. Ou, por outro lado, poderia acabar por reforçar as divisões existentes dentro do continente, enfraquecer radicalmente a aliança transatlântica e dar margem a uma intensificação das agressões russas.
O retorno de Donald Trump em um momento de turbulência geopolítica acentuada inaugurará um período de maior volatilidade e incerteza no palco global. Mais propenso a precipitar tanto colapsos catastróficos quanto avanços improváveis, Trump 2.0 é a receita para uma crise geopolítica mais aguda e profunda.